Por vezes, a pesquisa leva quem a escreveu por caminhos inimagináveis. É o exemplo do professor Marcus Carvalho, do Departamento de História. No próximo fim de semana, o docente desembarcará no Rio de Janeiro e às 23h, do domingo (2), desfilará na Sapucaí pela Escola de Samba Unidos do Viradouro. Marcus foi convidado pela escola após sua pesquisa histórica sobre “Malunguinho do Catucá”, que escreveu há mais de 30 anos, ser utilizada no repertório para o enredo da atual escola campeã do Grupo Especial do Carnaval do Rio.
Com o enredo “Malunguinho: o Mensageiro de Três Mundos”, a Viradouro conta a história do líder do Quilombo do Catucá, refúgio localizado em Pernambuco. O tema é um mergulho na resistência e cultura afro-indígena. Além do professor, cerca de 40 pais e mães de santo sairão do Recife com destino ao Rio de Janeiro para atravessar a Sapucaí. “O assunto chegou na escola de samba por meio da Jurema, não foi através do meu estudo. Agora, quando eles foram pesquisar sobre o tema, me encontraram. Porque a descoberta do Malunguinho é minha. O Malunguinho carnal, para usar uma linguagem da Jurema, que teve uma existência carnal, uma existência concreta, como nós todos”, explica Marcus Carvalho.
Em outubro, o docente esteve no barracão da escola de samba Unidos do Viradouro. No local, ele viu um pouco do que será apresentado na Sapucaí durante o desfile carnavalesco. A letra do enredo traz trechos com estrofes que fazem referências a Pernambuco e ao Quilombo Catucá, como nos trechos: “transbordo a revolta dos mais oprimidos, eu sou o caboclo da mata do Catucá” e “Reis Malunguinho, encarnado. Pernambucano, mensageiro bravio”.
A história do docente da UFPE e o Maluguinho teve início quando durante o doutorado, no final dos anos 80, Marcus pesquisava sobre o período da Independência do Brasil em Pernambuco. Desse estudo surgiu um grande interesse sobre a ascensão dos Cavalcantes e como foi o processo do período em que aquele grupo tomou o poder no estado. Com a leitura da documentação da época da independência ficou evidente, para o professor, que o maior problema para ordem política era o Quilombo do Catucá. Após o término do doutorado, ele se dedicou a conhecer mais sobre este quilombo.
“Catucá, na verdade, é o nome de um conjunto de matas que saía, vamos dizer assim, do que hoje em dia é o bairro de Dois Irmãos e ia serpenteando entre engenhos da Zona da Mata Norte, passava por Goiânia, até o estado da Paraíba. Ali havia imensos grupos de quilombolas. A documentação que a gente tem sobre os quilombos, não é escrita pelos quilombolas, é escrita por aquelas pessoas que vão matar eles, é escrita por seus algozes. Depois de algum tempo de estudo começa, então, a aparecer o nome do principal líder: Malunguinho. Os registros identificam que o último Malunguinho, o rei das matas do Catucá, foi João Batista, morto em 1835”, conta Marcus.
De acordo com o professor do Programa de Pós-Graduação em História da UFPE, a palavra malungo é bem conhecida por estudiosos da escravidão, não só no Brasil, mas também na Jamaica e no Haiti, pois era a forma como se tratavam mutuamente as pessoas que vieram da África no mesmo navio negreiro. Então, se duas pessoas vieram para o Recife no mesmo navio negreiro, elas são malungos. É visto como uma espécie de uma irmandade, um vínculo simbólico, um parentesco simbólico. O uso do diminutivo “inho”, por sua vez, mostra um abrasileiramento do termo, porque revela uma influência não só africana, mas também das línguas indígenas.
Marcus observa que não raras foram as vezes que os próprios quilombolas eram chamados de malunguinhos. O nome do líder chegou às autoridades através de quilombolas torturados, talvez, para escapar, os fugitivos tenham se referido a uma entidade que protege seus seguidores. O docente explica que a Jurema é a mais brasileira das religiões, pois tem sua origem na pajelança indígena e fala um pouco sobre o vínculo. A religião tem um vínculo direto com o Malunguinho já que, acredita-se que, nada se realiza sem a permissão de Malunguinho. Ele é o Rei das Matas. É ele que abre os caminhos.
“Havia um grupo de estudo muito forte em Antropologia, liderado pelo professor Roberto Motta, que estudava a Jurema. E lá estava o Malunguinho como uma entidade. Dos pontos, tinha um que me chamou atenção: ‘Malunguinho, portal de ouro/ Malunguinho, portal de espinho/ Cerca, cerca, Malunguinho/ Tira as estrepes do caminho’. O estrepe é um artefato militar que caiu em desuso. É formado por paus pontudos que você bota embaixo de uma armadilha para pessoa cair e literalmente se estrepar. Ou esse pau pontudo mais comprido que você crava no chão para impedir o avanço de cavalaria. A expressão estrepar-se vem daí. Isso me encantou muito, havia realmente uma entidade. E havia também a dúvida, o que é que veio primeiro? É possível que a entidade existisse anteriormente, já que a Jurema, a raiz dela é a Pajelança Indígena”, detalha o docente.
O professor Marcus comenta que em 1996, escreveu um texto no livro “Liberdade por um fio: História dos quilombos no Brasil”. Ele fez várias cópias deste texto e entregou aos juremeiros, o que ajudou muito para o reconhecimento da comunidade de quilombo, do terreiro, além de dar respeitabilidade, porque ficou comprovado que Malunguinho teve uma existência concreta. “Tem uma coisa que sempre faço questão de dizer: ‘não sou da Jurema, na verdade, eu sou ateu’. Faço questão de dizer isso, não é por uma questão de agressividade, mas na verdade, eu quero falar apenas como historiador. O que me interessa é a concretude, a existência documentada de um grande líder quilombola chamado Malunguinho. Realmente, não posso afirmar taxativamente, mas provavelmente o Malunguinho é uma entidade anterior ao Malunguinho do Quilombo Catucá”, avalia.
ORGULHO
“O meu estudo ganhou pernas, voou, ganhou asas mesmo. Saiu de mim foi pra Jurema, ajudou muito o pessoal da Jurema, no reconhecimento de comunidade. Quer dizer, esse é o grande sonho do historiador: que o seu trabalho sirva de alguma forma para o povo brasileiro e serviu. Deixou de ser meu. Ganhou domínio público. Até que ele chegou no Rio de Janeiro, de repente, na Viradouro. Juremeiros, muita gente da Umbanda, de terreiro, no Rio que ficaram encantados com a ideia de uma entidade, que foi um líder quilombola. Começaram a estudar e me encontraram. Então, eu estou muito feliz, muito emocionado mesmo com isso, de ter uma escola de samba, falando de um herói do povo brasileiro, cuja existência fui eu que descobri, realmente, não vou dizer outra coisa, não tenho nenhuma falsa modéstia em relação a isso”, exalta o professor Marcus.