Desde que os primeiros navios vindos da África aportaram no Brasil trazendo pessoas escravizadas em seus porões, o tráfico humano nunca deixou de ser uma realidade no Brasil. Nos dias de hoje, trata-se da terceira indústria criminosa mais lucrativa do mundo, depois do tráfico de drogas e de armas. Exploração sexual comercial, trabalho análogo ao de escravo, adoção ilegal e remoção de órgãos são algumas das finalidades a que a prática se destina.
Para combater essa grave violação aos direitos humanos, é preciso unir forças e atuar em rede. Nesse sentido, Recife, Pernambuco e o Brasil agora contam com uma ferramenta poderosa de enfrentamento ao tráfico de pessoas: o Guia para desenvolver uma resposta às vítimas de tráfico de pessoas em ambientes de assistência à saúde.
Lançado no Recife na quinta-feira (21), pela organização HEAL Trafficking, o manual tem a proposta de estimular a elaboração de protocolos que orientem o profissional de saúde a identificar, acolher, tratar e encaminhar adequadamente vítimas de tráfico de pessoas, além de atuar na prevenção ao crime. A data escolhida para lançamento faz alusão ao Dia Internacional Contra a Exploração Sexual e o Tráfico de Mulheres e Crianças, neste sábado (23).
Com financiamento do David and Natasha Dolby Fund, o guia foi adaptado à realidade brasileira com apoio das instituições parceiras do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas em Pernambuco (GTETP-PE), e traz, à parte do texto principal, uma série de boxes tratando da estrutura de saúde e de assistência social do Recife. Os dados resultam de um Acordo de Cooperação Técnica entre a Prefeitura da Cidade do Recife e a HEAL Trafficking, através da ONG Gestos - Soropositividade, Comunicação e Gênero.
Ao apresentar o documento, em evento no Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região (TRT6), a doutora Hanni Stoklosa, diretora médica da HEAL Trafficking, destacou que, de acordo com pesquisas validadas internacionalmente, 68% das vítimas de tráfico de pessoas procuram atendimento de saúde enquanto ainda estão sendo exploradas. Assim, pronto-socorros, serviços de emergência, ambulatórios, clínicas e hospitais tornam-se ambientes oportunos e decisivos para a identificação e suporte a sobreviventes.
“Eu realmente acredito que a área de saúde é a mais poderosa força antitráfico de pessoas. Quando você pensa no indivíduo que é vítima de tráfico e entra em contato com outras pessoas enquanto está sendo explorado, em quem ele confiará mais do que no médico e no enfermeiro? Como profissionais de saúde, somos capazes não apenas de intervir e ajudar as vítimas, mas impedir que o crime aconteça”, explicou a médica.
Originalmente publicado em inglês, em 2016, o guia da HEAL Trafficking já é utilizado por profissionais de vários países. A ideia de fazer uma versão em português e adaptada para os trabalhadores da saúde no Recife foi motivada, segundo Stoklosa, por fatores como o pioneirismo de Pernambuco em ações voltadas à erradicação do tráfico de pessoas, apesar dos desafios contínuos, e pela grandeza do Sistema Único de Saúde (SUS), que serve de exemplo para outras nações.
O guia está disponível para download gratuito neste link (https://healtrafficking.org/bp/). O objetivo da HEAL Trafficking é que o material seja adotado e adaptado para outras cidades do País.
Presente no evento de lançamento, a secretária de Saúde do Recife, Luciana Albuquerque, frisou que o documento, ao orientar profissionais de saúde, representa um importante avanço no enfrentamento ao tráfico de pessoas.
“A maioria das vítimas passa por um serviço de saúde em algum momento. E o guia orienta por onde começar a envolver essa área na solução do problema. A gente ratifica a importância que a Secretaria de Saúde do Recife dá ao tema e estamos dispostos ao enfrentamento, a mobilizar toda a nossa rede para botar o assunto na ordem do dia”, disse.
Procuradora do Trabalho e coordenadora regional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete), Débora Tito, ressaltou o papel da justiça de proteger, além das vítimas, os denunciantes de tráfico de pessoas.
“Estamos presenciando o começo de uma história que vai reunir os profissionais que têm maior capilaridade para fazer o encaminhamento dessas vítimas. Esses trabalhadores podem ter medo de relatar os casos. Então, nós do sistema de justiça, precisamos garantir que não haja esse receio de ser fonte de denúncia”, disse.
Coordenador do GT de Formação e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, o desembargador do TRT-6 Paulo Alcantara informou que pretende divulgar o guia junto aos cursos de medicina para que futuros médicos saiam do ambiente acadêmico já sabendo como atuar em relação ao tráfico de pessoas. “Trata-se de um tema cruel, mas não nos falta força para lidar com ele.”
A secretária Executiva de Desenvolvimento Social, Criança, Juventude e Prevenção à Violência e às Drogas do Governo do Estado de Pernambuco, Jane Santos, reforçou a importância de agentes do Estado e população se unirem na disseminação do manual. No Estado, o enfrentamento ao tráfico de pessoas passou a ser liderado pela Secretaria de Direitos Humanos, em composição tripartite com a Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança, Juventude e Prevenção à Violência e às Drogas e Secretaria de Defesa Social, que antes comandava a pauta.
“Temos o papel de difundir amplamente o sentido e o uso desse guia, pensando juntos nos próximos passos e estratégias”, disse. Afinal, o tráfico de pessoas também é uma questão de saúde.
Também participaram do lançamento a secretária de Desenvolvimento Social, Direitos Humanos, Juventude, Política sobre Drogas da Prefeitura da Cidade do Recife, Ana Rita Suassuna; a secretária executiva de Atenção Básica do Recife, Juliana Martins; a secretária executiva de Direitos Humanos do Recife, Elizabete Godinho; a coordenadora de Programas e Projetos da Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero, Jô Meneses; o cônsul dos Estados Unidos para Assuntos Políticos e Econômicos, John O’Brien; a presidente do TRT6, Nise Pedroso; a gerente sênior de programas do Freedom Fund no Brasil, Débora Aranha; além da psicóloga e pesquisadora Anália Ribeiro, consultora sênior da Freedom Fund, que lançou o livro Tráfico de Pessoas no Brasil – invisibilidade, monitoramento e avaliação da política pública, fruto de sua tese de doutorado.
O que é tráfico de pessoas?
O tráfico de pessoas se configura quando há ação de recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas por meio de ameaça, uso de força ou outras formas de coerção, com o objetivo de explorar as vítimas para diferentes tipos de finalidades.
Em geral, o tráfico de pessoas está relacionado diretamente a vulnerabilidades sociais, econômicas e culturais. No entanto, qualquer pessoa pode se tornar vítima.
Tipos de tráfico de pessoas
No Brasil, segundo a Lei nº 13.344/2016, há cinco formas de exploração relacionadas ao tráfico de pessoas:
EXPLORAÇÃO SEXUAL: Essa finalidade visa obter lucro através da exploração sexual das vítimas, que são forçadas a se envolver em atividades sexuais contra sua vontade. Elas são coagidas, ameaçadas e/ou submetidas a condições degradantes, muitas vezes sendo exploradas em bordéis, casas de prostituição, boates ou em contextos de prostituição forçada.
TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS À DE ESCRAVO: As vítimas são submetidas a condições de trabalho extremamente precárias, caracterizadas por jornadas exaustivas, falta de remuneração adequada, ausência de direitos trabalhistas e privação de liberdade. Elas são exploradas em diversos setores, como agricultura, construção civil, indústria têxtil, trabalho doméstico, entre outros. O objetivo é obter mão de obra barata e lucrar com a exploração do trabalho das pessoas traficadas.
REMOÇÃO DE ÓRGÃOS, TECIDOS OU PARTES DO CORPO: As vítimas são coagidas a fornecerem seus órgãos para o tráfico ilegal. Elas são submetidas a procedimentos cirúrgicos muitas vezes realizados de forma clandestina e sem condições sanitárias adequadas. Podem ser sequestradas, induzidas a doar e/ou vender seus órgãos ou até mesmo mortas para que os órgãos sejam retirados e comercializados no mercado ilegal.
OUTROS TIPOS DE SERVIDÃO: A submissão a qualquer tipo de servidão não encontra correspondente específico tipificado na legislação penal, mas pode ser qualificada como servidão por dívidas, casamento servil, situações de mendicância forçada e ainda cometimento de delitos (transporte de drogas, por exemplo).
ADOÇÃO ILEGAL: Nessa forma de tráfico, principalmente crianças são traficadas com o propósito de serem adotadas ilegalmente. As vítimas são retiradas de suas famílias biológicas, muitas vezes por meio de engano, sequestro ou compra, e vendidas a casais ou indivíduos que desejam adotar. Essa finalidade visa obter ganhos financeiros através do comércio ilegal de crianças.
Dados do tráfico de pessoas
Tanto no Brasil quanto no resto do mundo, o tráfico de mulheres e crianças para fins de exploração sexual tem sido a finalidade mais prevalente, enquanto os homens são frequentemente traficados para fins de exploração no trabalho.
Para além da geografia, a questão envolve gênero, raça e classe social, entre outras categorias. Mulheres, crianças, migrantes, população negra e pessoas socialmente excluídas geralmente estão em condição de maior vulnerabilidade e mais suscetíveis a propostas enganosas e abusivas.
No cenário global, inclusive no Brasil, mulheres e meninas são as principais afetadas por esse crime. Cerca de 50% dos casos de tráfico têm como objetivo a exploração sexual, sendo 92% das vítimas femininas.
Crianças e adolescentes são especialmente vulneráveis, com 19% das vítimas globais de exploração sendo meninas e 15%, meninos.
Pesquisas validadas internacionalmente apontam que pelo menos 68% das vítimas de tráfico de pessoas procuram atendimento de saúde enquanto ainda estão sendo exploradas.
No primeiro Boletim Epidemiológico de Tráfico de Pessoas, que reúne dados de 2011 a 2019, o Recife, assim como Manaus, aparece como segunda capital brasileira com maior número de notificações de tráfico de pessoas, 29, atrás de São Paulo com 74. Entre os estados, São Paulo (20,4%), Minas Gerais (14,1%) e Rio de Janeiro (7,8%) apresentaram os maiores percentuais. Na divisão por região, as maiores proporções foram registradas no Sudeste (44,2%) e no Nordeste (24%).