Que Mário? Aquele que tem o corpo em fúria e a alma rebelde? Aquele que nas Artes Cênicas faz um pouco de tudo: palhaçaria, bufão, performance, burlesque? Aquele que já contracenou com o eterno Antônio Abujamra (1932-2015) e com o José Celso Martinez Correa? Ou aquele que faz o maior sucesso entre o público do erotismo alternativo brasileiro?
Sim, o Mário Aquele é tudo isso: um cabra que faz um pouco de tudo e mais alguma coisa. Inclusive passar horas conversando sobre política, convivência com a natureza, luta de classes, religiosidade afro-brasileira, movimento punk, desenho de animação. E foi com ele que tive a satisfação de trocar muitas ideias e aprender. Eu também consegui conhecer muito além do performer que usa seu corpo e sua libido em nome de uma arte alternativa, que não vê mais corpos, mas simplesmente desejos.
Menino treloso - Mário Cruz Filho, 43 anos, é cearense de Fortaleza e civilmente assina Mário Filho. “Eu não quis carregar essa cruz”, confessa. Na infância, sempre foi uma criança trelosa, conseguindo a façanha de ser expulso de todas as escolas onde estudou, inclusive um colégio de padres. “Eu só consegui aprender a andar aos 10 anos. Até então, eu só corria. Sou filho único, considerado garoto problema e as coisas só começaram a melhorar pra mim na adolescência, quando tive uma professora de Artes que me incentivou à criatividade e quando pude, finalmente, me encontrar na Educação Artística”.
Após se encontrar nas artes, Mário começou a estudar e fez cursos, como o de Artes Plásticas e Escultura. “Alguém, que hoje eu não consigo me lembrar, de jeito nenhum, me disse que meu destino seria o Teatro, os palcos”. Dessa forma, foi estudar no Theatro José de Alencar, na Capital Cearense e começou no Ballet Clássico, que o deu as primeiras noções de disciplina corporal. Isso fez muito a diferença porque ele, logo depois, se dedicaria exaustivamente ao Teatro Físico.
Punk e Política – Paralelamente aos estudos de Arte, Mário entrou no Movimento Punk de Fortaleza e criou, ao lado de um primo – hoje professor universitário – a banda Diagnose, onde foi baixista e vocalista. O mais interessante de tudo é que o grupo musical existe até hoje, com outros integrantes, e é uma das bandas mais requisitadas do circuito underground na capital cearense. “Tudo que a gente queria era fazer barulho pra ser ouvido”.
A partir de então começou a estudar sobre Anarquismo, Socialismo e Comunismo, e participava de rodas de conversa no Centro de Fortaleza. Foi um dos fundadores da Associação Cearense de Rock, em 1998 e em 2000, foi um dos organizadores do Brasil pro Rock são outros 500, em meio às comemorações dos 500 Anos do “Descobrimento” (#sqn) do País. Chegou a ser filiado ao Partido dos Trabalhadores, mas não por muito tempo. “Se eu fosse hoje ser militante, acho que eu seria comunista, do ‘Partidão’ (PCB), eu sou muito à esquerda quando se trata de política”.
Fúria, Brasil e Coração – Como o destino de Mário estava no teatro, ele seguiu estudando e formou-se em Artes Cênicas. “Eu não parei. Priorizei meu corpo e fui estudar Mímica, Máscaras e transformei a rua no meu palco. Fui pro Teatro Físico e virei palhaço de Rua e foi aí que nasceu o palhaço Mário Aquele. A Rua precisa ser ocupada e a arte deve chegar às pessoas. Andei o Brasil todo, sertões, periferias, eu conhecia o País e me conhecia também”. E o que o movia a fazer tudo isso. “Eu sou fúria, tenho um coração que bate forte e muita vontade de ser feliz”.
E por falar em ser feliz, o coração do artista vive um relacionamento há cinco anos. Ainda não tem filhos, mas no futuro deseja sim, ser pai. Ele também tem formação em Artes Visuais, é pós-graduado em Animação. E sim, ele mesmo edita os próprios filmes de conteúdo adulto. Tudo com muito experimentalismo, luzes e cores.
Conhecer o Brasil tornou-se uma necessidade tanto de alma e corpo, que ele foi passar uma temporada no Tocantins, onde, na intenção de fazer uma pesquisa, acabou vivendo dois meses numa aldeia indígena. “Essa experiência foi fundamental em minha vida. morei com o povo krahô pesquisando os hotxuás, que são considerados os palhaços sagrados deles”, recorda. Os hotxuás são profundamente respeitados pela tribo. Eles usam a força do humor e do riso para fortalecer a autoestima do povoado, garantindo a sua cultura milenar.
Do Bufão ao Burlesque – De volta aos palcos, Mário trabalhou com dois monstros sagrados do Teatro Brasileiro: o rígido e disciplinadíssimo Antônio Abujamra (o eterno Ravengar de “Que Rei Sou Eu”) e o ousado José Celso Martinez Correa. Nessa época participou da montagem do espetáculo “Os Possessos”, de Fiodor Dostoiévsky.
Em 2014, o Palhaço Aquele Mário entrou no universo imoral do Bufão. E quem está lendo a história até aqui já deve ter se perguntado algumas vezes se o nome artístico vem da clássica piada da 5ª Série: “Você conhece o Mário? Que Mário? Aquele que te pegou atrás do armário”. E foi com esse espírito de zoeira que Mário Aquele – que nunca precisou de armário nenhum – passou a fazer espetáculos do burlesque, com direito a strip-tease e figurino de saia de bananas.
Com História – Daí para o universo do Conteúdo Adulto foi um pulo. Mário havia sido professor de cursos livres de teatro, máscara, mímica, dramaturgia. E conhecido como um artista ousado, foi convidado pela produtora erótica X-Plastic para dar aulas de interpretação aos atores e atrizes, pois a produtora queria fazer cenas “com história e roteiro”. E, ao dar aula aos homens e mulheres, e mexendo com sua natureza curiosa, perguntou como era trabalhar neste ramo. E então, em 2017, passou a atuar no segmento de erotismo alternativo, onde está até hoje.
E mesmo entre quatro paredes, Mário questiona o que deveria ser a “masculinidade saudável”. “Eu gosto de entrar no sistema pra mudá-lo e o alternativo veio pra mudar padrões, pois não falamos só de corpos, mas falamos principalmente de desejos. E esse desejo, esse tesão deve ser naturalizado, pois todos temos desejos”.
O moço tem perfis de conteúdo alternativo na internet e seu público-alvo – maioria de mulheres – se agrada das cenas protagonizadas. E qual foi a reação da mãe? “Quando disse a ela que eu estava num novo tipo de trabalho, ela primeiro se chocou, ‘Valha-me Nossa Senhora!’, mas passado o susto, ela perguntou se eu estava feliz e quando eu disse que estava, ela se tranquilizou.
Uma questão de Fé – Sua alma inquieta tem muito espaço para questões do Espírito. De formação católica romana, Mário passou pelo ateísmo na época do punk, chegou a se preparar pra ser budista, foi jovem místico e estudou filosofia. Mas foi durante um curso de percussão que ele se voltou à vivência afro-brasileira. O sincretismo nordestino o fez ir a benzedeiras e ao terreiro de Seu Totico, ainda na infância, no Ceará, e isso voltou intensamente à sua vida durante o retorno às raízes.
E relata: “Eu senti que havia um chamado e comecei a frequentar um terreiro de Umbanda e comecei a estudar o ‘embranquecimento’ da religião. Então minha devoção se voltou aos Caboclos, Exus, Jurema, a necessidade de estar perto da mata, da natureza. Sou devoto de Iemanjá e minha fé é deocolonial”.
E como concilia sua fé com seu trabalho no universo adulto? “O sexo não é pecado, não é proibido. É parte da vida. Tudo é vida e tudo é ato político. O que faz a diferença é o respeito que você tem pela pessoa que está com você. Não só no sexo em particular, mas na vida como um todo. Não adianta fazer ebó, rezar, se você for uma pessoa escrota”.
Planos e projetos - Para o futuro, os projetos incluem voltar a atuar no Burlesque e seguir com as produções de conteúdo adulto para a internet. Ele também deseja que a categoria se uma, pois trabalhadores de conteúdo alternativo são trabalhadores também. “Não são todos que ganham muito dinheiro no ramo, mas todos precisamos de ter apoios e garantias e, inclusive, cuidar da saúde, afinal, o corpo é nosso instrumento de trabalho”, afirma. E vai mais além: “E é preciso tomar cuidado com a conversa de empreendedorismo, pois muitas vezes quem se acha empreendedor cai na uberização do trabalho: primeiro produz, depois recebe. Por isso que vivo nessa campanha de trazer questionamentos”.
Autodefinição - E como o Mário se define enquanto pessoa? “Antes de qualquer coisa eu sou artista, porque sou um espectador da vida. E é isso que eu digo às pessoas que estão lendo aqui: SEJA O ARTISTA DA SUA PRÓPRIA VIDA”. Ao ser questionado sobre a sua essência, Mário não pensa duas vezes ao responder: “A essência é determinante, mas eu, como sempre estou em movimento, eu construo esse essencial, que só vai ficar pronto quando eu bater as havaianas. Por agora eu procuro ser um cara legal”, finaliza.
Por fim, vamos saber mais o que ele curte na hora de lazer
Literatura – “Leio bastante Shakespeare, Paulo Leminsky, Dostoievsky, Hilda Hilst e tenho um carinho enorme por Manoel de Barros”
Música – “Claro que até hoje ouço muito o Punk. Mas também curto Reggae e Música Popular Brasileira, especialmente ritmos que me levam às raízes, como Samba, Chorinho, Siba, Alessandra Leão, e, claro, pontos de Umbanda”.
Cinema – “Gosto das animações da Coala Filmes, de Zé do Caixão, de Glauber Rocha, do Akira Kurosawa e do novo cinema Sul-Coreano”