domingo, 5 de março de 2023

Entrevista: Vania Coelho, uma voz que fala sobre o silenciamento de mulheres

 

Há seis anos, 08 de março de 2017 o Blog Taís Paranhos, no Dia da Mulher, fez uma série de textos sobre mulheres que foram silenciadas, ou seja, quase todas as relatadas foram assassinadas. E ao longo da história, muitas foram silenciadas, algumas para sempre. A escritora, professora universitária e jornalista Vania Coelho fez de sua obra uma voz contra esse silenciamento. Em 2021, lançou seu livro A Incrível Lenda da Inferioridade, Volume 1, como uma forma de expressão e denúncia. "Fiquei meses tentando gritar. Precisava denunciar todo o caos que ocorria diariamente. Mas como? A denúncia surgiu com a pesquisa e a leitura do silenciamento feminino ao longo dos tempos. Assim nasceu A Incrível Lenda da Inferioridade, volume I, em 2021, no auge da pandemia, editado pela Chiado, de Lisboa".

Agora, em 2023, está divulgando o segundo volume, onde cita outros nomes que tentaram silenciar, o que a deixa pessimista diante das perspectivas atuais. "Não vejo um futuro livre de violência na vida da mulher. O retrocesso da extrema direita no mundo dificulta a criação de políticas públicas e leis que possam salvaguardá-las. No volume II de A Incrível Lenda da Inferioridade falo sobre Malala e muitas outras mulheres que lutaram e lutam por igualdade e paz. Hoje, eu luto para que um dia a mulher seja respeitada e que ela possa viver em paz (do jeito que desejar) sem ser chamada de vagabunda ou inadequada".


Em entrevista ao Blog, Vânia Coelho nos conta de que forma a humanidade sempre silenciou mulheres que, querendo ou não, ousaram enfrentar o patriarcado de variadas formas e de como foram caladas - algumas para sempre - desde antigas narrativas. Um exemplo é o da personagem Lilith, que - de acordo com antigas narrativas hebraicas - era uma mulher feita de barro como Adão e que queria ter os privilégios patriarcais. Na narrativa ela é substituída por Eva, vinda da costela do homem e silenciamento é de tal forma que sua história não é parte da Bíblia e muita gente não sabem nem quem é a personagem.
Vamos ler a conversa com a Escritora, Professora e Jornalista?

1) Como surgiu a ideia de escrever "A Incrível Lenda da Inferioridade"?
Sou feminista e sempre militei pelos direitos das mulheres. Luto pela liberdade feminina. Há, ainda hoje, muita violência (psicológica, emocional e física) sobre a mulher (no Brasil e o mundo). Milito por meio de palestras e pela literatura, meus gritos mais guturais vêm da literatura, portanto, de meus livros. Por volta de 2016, quando a ex-presidente Dilma Rousseff sofreu impeachment, uma nuvem estranha e dolorida tomou conta da sociedade brasileira. Desde a posse de Michel Temer, o Brasil foi invadido por demônios de toda ordem e um retrocesso imenso passou a fazer parte do país. A violência contra a mulher aumentou e a banalização dessa mesma violência incomodou-me sem precedentes. Fiquei meses tentando gritar. Precisava denunciar todo o caos que ocorria diariamente. Mas como? A denúncia surgiu com a pesquisa e a leitura do silenciamento feminino ao longo dos tempos. Assim nasceu A Incrível Lenda da Inferioridade, volume I, em 2021, no auge da pandemia, editado pela Chiado, de Lisboa. Confinada no alto de uma montanha mineira, a 1700m de altitude, nos anos de 2018 e 2019, no silêncio da Serra da Mantiqueira, dei início à escrita contando a história real de 33 mulheres que sofreram opressão pelo patriarcado.

2) Você tem uma trajetória como jornalista, escritora e professora. Como você, dentro de sua vida profissional, identificou essas "inferioridades"?
Sou jornalista e lecionei no curso de Jornalismo por longos anos, era orientadora de TCCs. No curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, o trabalho de conclusão de curso é um livro-reportagem. Minha trajetória jornalística deu-se nas universidades. Eu li praticamente todos os clássicos do jornalismo no que tange à grande reportagem impressa. A literatura, assim como o jornalismo (guardadas as proporções), também ensina, informa, critica e denuncia. A partir disso, decidi caminhar pela literatura para denunciar as atrocidades que as sociedades do mundo todo, incluindo as do Brasil, praticavam contra as mulheres. Iniciei as pesquisas jornalísticas e adequei os resultados ao New Journalism. Identificar as inferioridades que as sociedades impõem desde Adão até hoje sobre as costas das mulheres é fácil, é só apreender a realidade. Da mulher é cobrado, além de ser ótima esposa, filha obediente e mãe dedicada, que siga os padrões de beleza e juventude que o patriarcado escolheu. Mulher idosa é descartada, não tem utilidade nas sociedades. A velhice feminina é social. Outra identificação vem da própria experiência como filha de militar e advogado, esposa de um homem que veio de uma família tradicional e conservadora, uma família descendente de italianos que acreditava que, além de serem superiores, neles residiam a verdade absoluta. Nessa história particular (minha), casei-me com a família inteira do cônjuge, é complicadíssimo ter que se explicar (e obedecer) constantemente aos membros desse clã fechado e reacionário.


3) No seu ponto de vista, por que o patriarcado insiste em silenciar mulheres que se empoderam e se destacam na sociedade?
O patriarcado insiste em silenciar mulheres para que possa manipulá-las. Oprimem, castigam e silenciam (se for preciso) para manter a dicotomia Família & Propriedade; para ter a certeza de que, exigindo a virgindade, os filhos serão legítimos; para ter a liberdade de, tendo a mulher para procriar e cuidar da casa e da prole, poderão os homens irem e virem e estarem onde (e com quem) desejarem. Tão simples e fácil é ter uma esposa (empregada) em casa. O patriarcado criou um “kit” completo: ao se casar, o homem ganha (durante o dia) a faxineira, a cozinheira, a arrumadeira, a organizadora e, à noite, a escrava sexual. Como foi exigido por longos séculos a virgindade feminina, as mulheres casam-se sem experiência alguma. E isso é péssimo (também proposital), porque a liberdade sexual é a extensão de outras liberdades que a história negou à mulher. Não à toa, Freud estudou e deixou claro que a repressão sexual trazia diversas neuroses ao longo da vida. Em A Função do Orgasmo, Reich é contra a repressão sexual, segundo ele, a proibição dá-se em nível psíquico e físico, gerando doenças e dores crônicas.

Se os homens são os que fazem as leis, as traições masculinas são apropriadas, e as femininas, condenadas. Eu ficaria escrevendo aqui até amanhã enumerando centenas de razões para o patriarcado ser um paradigma que, ainda hoje, rege sociedades e países. A religião é outro entrave fabricado pelos homens. Há muitas questões que desenvolvo no volume II de A Incrível Lenda da Inferioridade. Cito, por exemplo, as práticas hediondas do Sati, do Cinto de Castidade, do Chauppadi, do Breast Ironing, das exigências do sangramento na noite de casamento, da maternidade, do primeiro e segundo e terceiro filho serem homens, da proibição constante às escadas do conhecimento, e por ai vai. São necessárias leis rigorosas, e políticas públicas que auxiliem as mulheres que sofrem violência, mantendo seus algozes na cadeia.

4) Você pesquisou mulheres ao longo da História, da idade antiga à atualidade. Ainda hoje você enxerga o silenciamento das mulheres?
Hoje, o silenciamento está escancarado. Desde o assassinato de Ângela Diniz por Doca Street (e tantas outras mulheres) e a palhaçada misógina do seu primeiro julgamento, condenando a ré e não o assassino, é prova incontestável de que a violência não cessa e de que aos homens é permitido matar pela honra ou por uma decisão qualquer. O goleiro Bruno assassinou Eliza Samudio, e a maioria o venera. Onde estamos? O ex-lutador Paulo Lima dos Santos matou a esposa, jogou o corpo dela em um riozinho, e depois, foi almoçar com a sogra. Em que mundo vivemos? São milhares de histórias de ódio e morte. Conheço uma infinidade de casais, cujas mulheres andam pisando em ovos de medo da violência. A bibliografia que denuncia os atos misóginos é imensa. Ano passado, várias pesquisadoras entrevistaram mulheres em abrigos secretos, dessa reportagem nasceu o livro Enquanto não cicatriza.

5) E você? Chegou a vivenciar ou testemunhar de perto algum caso de silenciamento às mulheres?
Desde muito pequena eu sentia uma revolta ao ver o quanto minhas tias eram infelizes, e o quanto seus maridos reclamavam delas sem cessar. Testemunhei várias agressões. Meu pai nunca bateu em minha mãe, mas gritava, humilhava, quebrava coisas, ameaçava, era muito difícil. Cresci jurando para mim mesma que nunca passaria por situações como aquela e que lutaria contra a violência gratuita que as mulheres sofriam e sofrem. Minha avó materna casou-se aos quinze anos sem conhecer o marido que escolheram para ela. Só o viu antes da cerimônia. Não vou citar nomes, mas um tio batia na irmã de minha mãe, presenciei muitas vezes. São atos de grande covardia masculina. A maioria de minhas descobertas vem da história e da literatura. São resultados reais (e tristes) de minhas pesquisas. Minha mãe tinha um olhar triste. Minha avó materna tinha um olhar triste. Olhar o olhar de minha mãe me deixava revoltada.

6) Entre as personagens citadas estão Lilith e Eva. Enquanto Eva carrega a culpa do pecado, Lilith é silenciada a tal ponto que muitas pessoas religiosas, leitoras da Bíblia, sequer sabem quem ela é. A que fatores se deve esse silenciamento milenar da Lilith.
O silenciamento de Lilith tanto quanto o de Eva foram devido ao conhecimento que as duas se permitiram. Se é verdade que Eva levou Adão a pecar (aliás, pecado e culpa são dois conceitos inventados pela igreja e pelos homens representantes do poder) essa verdade, entre aspas, é alicerçada na incoerência, ela apenas observou e tentou conhecer a si mesma. Teve curiosidade e usou sua inteligência para desvendar ou experenciar algo. Eva foi castigada, porque ousou conhecer, ousou caminhar na estrada do saber. E foi condenada como pecadora. No entanto, aqui cabem mil outras questões que eu não daria conta de enumerar. Eva sabia que tinha libido. Adão foi criado para acreditar que sua libido (pecaminosa) era fruto de Eva. Isso traz muitos problemas, não é a mulher que desvia o homem do estado racional para o instintivo, como se faz crer leis e paradigmas, o homem tem libido independentemente de a mulher existir. E o que se diz do homem que se masturba apenas por prazer, sem fantasiar mulheres nuas? E o que se diz do homem que sente atração por outro homem? A mulher não desvirtuou o homem, apenas seguiu seu prazer. E foi condenada para nunca mais fazer isso. Lilith não aceitou sua origem e condição inferior, vir do barro ou das fezes, ter nascido de uma costela masculina. Lilith rejeitou tudo o que impuseram a ela, com isso passa a não servir como exemplo de mulher. Nessas histórias temos a inadequada e a pecadora. Aliás, cabe aqui um parêntese: a mulher não veio da costela de Adão, pelo contrário, foi o homem que veio do útero fértil da mulher. Do útero saiu pela vagina.

Essa ideia de que a mulher desvia o homem do racional, acende a libido dele, faz com que o estupro seja absolvido, e até consentido, porque as meninas estavam com saia curta, um short agarrado, estavam com batom e, talvez, um decote assim assado, E daí o homem violento e estuprador é inocentado, essa ideia é desde Eva e Lilith. É foda.

7) Que perspectivas você vê para o futuro de mulheres de destaque? Nomes como o de Greta Thunberg e o de Malala (que quase foi silenciada pelos talibans)? E no Brasil? Que nomes poderíamos citar?
Não vejo um futuro livre de violência na vida da mulher. O retrocesso da extrema direita no mundo dificulta a criação de políticas públicas e leis que possam salvaguardá-las. No volume II de A Incrível Lenda da Inferioridade falo sobre Malala e muitas outras mulheres que lutaram e lutam por igualdade e paz. Cito as feministas como Bertha Lutz e Clara Zetkin, as sufragistas, Marie Curie, Rosa Luxemburgo, Eidy da Silva, Yoko Ogawa, Nair de Teffé, Anna Amélia, Rachel de Queiroz, Clementina de Jesus, Chiquinha Gonzaga, Pagu e tantas outras. E, refletindo sobre a luta delas, sinto-me, muitas vezes, engatinhando. Parece que o movimento feminista caminha em círculos em lugar de ascender. Pagu, foi a segunda mulher presa política da história brasileira, a primeira foi Bárbara Alencar, e a terceira, Rachel de Queiroz. Sucessivamente, temos Djanira da Motta que também foi presa. Hoje, eu luto para que um dia a mulher seja respeitada e que ela possa viver em paz (do jeito que desejar) sem ser chamada de vagabunda ou inadequada.

8) Fale sobre sua trajetória de vida, como mulher, jornalista, escritora e professora.
Minha carreira jornalística deu-se dentro das academias. Nelas, exerci função de editora-chefe de jornais laboratoriais e diretora de programas televisivos. Lecionei disciplinas teóricas como história da comunicação e do jornalismo, trabalhei com prática de entrevista e orientei os TCCs, como citado. Participei de inúmeros eventos voltados ao jornalismo e dei inúmeras palestras. Foram mais de 30 anos lecionando. Nesse período escrevi oito livros: Costureira dos Malditos; Ritos Encantatórios; Aspectos Teóricos da Linguística; Tormenta; A mulher na Idade Média. In: História e Resistencia; Os Inocêncios; A Incrível Lenda da Inferioridade I e II. O volume II dessa última obra será lançado em abril desse ano pela Appris Editora.


Vânia Coelho*