O projeto de imersão cultural que, em 2020, deu início a um trabalho de união entre as tradições orais da África Ocidental e do Sertão pernambucano ganha continuidade esse ano. Entre os dias 14 e 24 de janeiro, o artista contador de histórias africano François Moïse Bamba, do país Burkina Faso, volta ao Pajeú graças ao projeto “Do Burkina Faso a Terras Quilombolas: a voz das histórias”, que consiste na realização de um conjunto de atividades artísticas e culturais de intercâmbio entre as comunidades quilombolas Abelha, Travessão do Caroá, Brejo de Dentro e Gameleira, no município de Carnaíba, e o artista contador de histórias africano.
Será uma imersão no patrimônio imaterial local das comunidades, em diálogo com o universo cultural do artista convidado, tendo como guia sua prática profissional no campo da oralidade, da narração e da transmissão e salvaguarda do patrimônio imaterial. François Moïse Bamba é um dos contadores de histórias de maior reconhecimento na África Ocidental, que vem viajando o mundo como um porta-voz das culturas tradicionais orais de sua região. “Quando se tornou contador, François foi buscar seu repertório no vilarejo de origem de sua família, coletando histórias do seu povo, os Sénoufo. É toda essa experiência do artista que vai guiar o processo que será realizado conjuntamente com as comunidades, que também tem uma riquíssima prática da oralidade: junto a lideranças e jovens da comunidade, conversaremos sobre como coletar histórias, iremos a campo à escuta das histórias, para depois trabalhá-las numa oficina de narração" explica Laura Tamiana, uma das idealizadoras do projeto e tradutora em cena.
Ao final do encontro será realizada uma grande roda de histórias, aberta ao público. “A proposta é valorizar e reativar essa prática da narração em contextos familiares e comunitários, que permitem a transmissão dos saberes e fazeres locais, além de munir os jovens e a Comissão Quilombola da arte da narração, pelo viés da prática oral africana, uma ferramenta potente na luta pelo seu reconhecimento”, completa Karuna de Paula, co-idealizadora.
O projeto, que tem o incentivo do Funcultura - Governo do Estado de Pernambuco, foi concebido e realizado pelas artistas multidisciplinar e produtora Laura Tamiana e pela pesquisadora, professora e produtora Karuna de Paula, residentes em Recife, em parceria com Edna Andrade, liderança quilombola, e a Comissão Quilombola do Caroá.
A Comissão, que cuida de toda a organização local das atividades, é composta por lideranças das quatro comunidades – Abelha, Brejo de Dentro, Gameleira e Travessão do Caroá. Essas comunidades dialogam entre si através das artes e de elementos tradicionais dos quais são herdeiras. A matriz afrodescendente é o elo dessas comunidades que abrigam em torno de 330 famílias e uma população de 1.320 pessoas.
A relação entre François Bamba e a arte de contar histórias vem da infância. “Desde pequeno, tive a sorte de ter meu pai que contava histórias. Pouco a pouco, um grupo de crianças contadoras se constituiu, tentando imitar as histórias do meu pai. Indo coletar os contos, eu descobri um outro valor da vida, um outro valor do humano, que começa a desaparecer nas grandes cidades”, comenta o ator. “Então, assim que eu soube que viria encontrar comunidades, foi um grande prazer para mim, porque significava, imediatamente, poder conhecer mais e também compartilhar as palavras de onde eu venho, além de encontrar as palavras daqui, desta comunidade”, completa.
“As tradições orais carregam uma imensa sabedoria. Acreditamos que colocar em contato essas práticas, entre pessoas de cá e de lá, seja profundamente enriquecedor para ambos os lados, pois o encontro permite reconhecermos no corpo a conexão antes de tudo humana que a oralidade traz, e mais precisamente a conexão histórica que existe, e através desse corpo torná-la atual e viva, abrindo caminho para novos possíveis”, pontua Laura Tamiana, que desde 2017 trabalha em parceria com Bamba, com atividades artísticas e culturais entre o Brasil e o Burkina. “Quando vivemos o encontro e a experiência no corpo, quando encontramos realmente a partir da presença, tem algo que fica impresso na gente, no sentido do afeto, que é extremamente transformador”, finaliza.
O projeto não pretende parar por aí. O passo seguinte será buscar caminhos para viabilizar a ida de integrantes das comunidades para participarem do FIASSE – Festival Internacional das Artes da Cena e dos Saberes Endógenos, organizado por Bamba anualmente em seu país. “Eu ouvi algumas pessoas falando que conhecer a África é conhecer a história delas que foi negada. E história é memória. E memória é poder”, afirma Karuna de Paula.
“Do Burkina Faso a Terras Quilombolas: um encontro pela oralidade”
Em 2020, François Moïse Bamba visitou pela primeira vez as comunidades quilombolas Abelha, Travessão do Caroá, Brejo de Dentro e Gameleira, no sertão do Pajeú. O subtítulo dessa primeira etapa do projeto “Do Burkina Faso a Terras Quilombolas” foi "Um encontro pela oralidade”. Durante oito dias, Bamba e uma pequena equipe residiram na comunidade de Abelha, com um programa que incluía atividades e momentos cotidianos, espaços para o artista e os moradores das quatro comunidades partilharem mutuamente suas heranças e vivências na tradição oral. Foi um intercâmbio cultural carregado de identificação e vivências compartilhadas, unindo as tradições orais da África Ocidental e do Sertão pernambucano.
O registro da experiência, feito em foto e vídeo pela artista Paula Vanina, que integrou a equipe em imersão, se transformou em um documentário, também nomeado "Do Burkina Faso a Terras Quilombolas: um encontro pela oralidade”. O filme, que teve estreia em agosto de 2021, está disponível para o público no canal de YouTube de Laura Tamiana.
A relação com o Brasil
O projeto “Do Burkina Faso a Terras Quilombolas” se insere no contexto de uma colaboração mais ampla entre o Brasil e o Burkina Faso. Desde 2017 François Moïse Bamba e Laura Tamiana trabalham juntos, realizando projetos culturais e artísticos entre seus países. A dupla deu ao conjunto de suas atividades realizadas em parceria o nome de Ba-kô, que na língua africana Bambara tem dois significados: “as costas da mãe” e “do outro lado da margem”, esse nome simbolizando para eles o convite a ir ao encontro do outro, à descoberta do mundo, a partir de um lugar de acolhimento e cuidado, já que é nas costas que as mães africanas carregam seus bebês.
“Nos encontramos no palco graças ao nosso fazer artístico e rapidamente muitas afinidades se criaram. Nosso desejo é o de alargar cada vez mais essa ponte, para que mais pessoas de cá e de lá possam se encontrar, esse é o objetivo dos nossos projetos”, explica Laura. A artista, que se tornou parceira do FIASSE, festival de patrimônios imateriais realizado por Bamba em seu país, vem também através de sua produtora, a Terreiro Produções, organizando anualmente turnês de Bamba no Brasil, com apresentações de contos, oficinas, conferências e intercâmbios. Após a realização deste projeto no sertão do Pajeú, será a vez de Recife acolher uma oficina e uma apresentação do artista, no final do mês de janeiro, últimas atividades desta turnê que já passou por São Paulo e Rio de Janeiro antes de chegar em Pernambuco.
Serviço:
"Do Burkina Faso à Terras Quilombolas: a voz das histórias"
Local: comunidades quilombolas Abelha, Travessão do Caroá, Brejo de Dentro e Gameleira, no sertão do Pajeú
Data: 14 a 24 de janeiro de 2023
Incentivo: Funcultura - Governo do Estado de Pernambuco.