sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Mesmo com redução de casos e óbitos por Covid-19 em todos os Estados, risco de efeito bumerangue ainda não está descartado, diz Comitê Científico

O retorno seguro das crianças às aulas presenciais é um enorme desafio para gestores escolares, profissionais de saúde e governantes que devem utilizar as melhores evidências científicas para definir e formatar estratégias e ações de adequação do ambiente escolar para torná-lo o mais seguro possível. “Não se trata apenas de tornar o ambiente escolar seguro do ponto de vista da infecção pelo novo coronavírus mas, também, em outros aspectos, como segurança alimentar, física e emocional de todo o corpo social da escola, estudantes, professores e funcionários”, enfatiza Sergio Rezende, cientista e ex-ministro de Ciência e Tecnologia que, juntamente com o neurocientista Miguel Nicolelis, coordena o Comitê Científico de Combate ao Coronavírus do Nordeste, que divulgou o Boletim 11. 

Embora as evidências indiquem que crianças respondem por apenas 2% dos casos no Brasil e no mundo, a questão da reabertura das escolas para aulas presenciais é mais complexa. “Há muitas evidências de que a opção de abrir escolas deve ser acompanhada de medidas de mitigação e prevenção da doença”, destaca o boletim. Em Israel, por exemplo, não foram tomadas medidas adequadas para evitar a transmissão. O retorno às aulas se deu sem as medidas de distanciamento, com salas fechadas e com ar condicionado e sem limitação do número de alunos por sala, e levou a maiores taxas de contaminação. Já a Austrália, que reabriu com uso de máscaras, distanciamento social, higienização frequente e outras medidas de prevenção, reduziu substancialmente os números de casos nas escolas. 

No Nordeste, outros fatores devem ser considerados além da questão epidemiológica. A quarentena acentuou as já conhecidas desigualdades do sistema educacional do país. “É urgente todos nós, governos, educadores, profissionais de saúde, sociedade e famílias pensarmos em planos estratégicos de enfrentamento dessa questão, baseados nas melhores evidências científicas para além apenas das questões do contágio, mas, sobretudo, na nossa realidade social. Estamos diante de um problema complexo, que não tem solução fácil ou simplista, diferente em cada região”, diz Nicolelis. 

A segurança alimentar, por exemplo, está sendo impactada pela ausência da merenda escolar, importante complemento na alimentação infantil, e pelo abuso de alimentos ultraprocessados em casa, que pode gerar até alterações de pesos nas crianças. Há ainda a questão psicoemocional dos alunos que na quarentena estão submetidos a um regime de pressão e tensão psicológica com irritabilidade, tédio e ansiedade em função do isolamento social. 

Recomendações - Nesse sentido, o Comitê Científico sugere programas como o Programa Saúde na Escola (PSE), entre outros, como meio efetivo de proteção integral às crianças e adolescentes, através de atividades de formação do corpo social da escola e do uso de ferramentas de proteção como aplicativos, MonitoraCovid, por exemplo, e canais de comunicação e integração nos espaços escolares. “Essas ações dependem de decisões políticas no nível mais alto da gestão governamental, como prioridade máxima e sob comando de quem efetivamente decida, nesse contexto da pandemia”, alertam os cientistas. O Boletim indica os princípios para o planejamento rigoroso e cauteloso da volta progressiva e escalonada às aulas, com segurança e menor risco: 

1) Análise da situação epidemiológica (número de casos e óbitos) e assistencial (disponibilidade de leitos) de cada localidade; 

2) Incorporação das medidas de prevenção: medição diária da temperatura de todos os alunos, uso obrigatório de máscaras, distanciamento físico, higienização das mãos, dentre outras; 

3) Capacidade de identificar, isolar e testar (preferencialmente com RT PCR) qualquer pessoa, na escola, que apresentar sintomas, bem como seus contatos; 

4) Estruturar, no âmbito das escolas, grupos que promovam programas de proteção integral, a exemplo do NIL (Núcleo Intersetorial Local), cuja missão é o acompanhamento de todas as ações de integração, proteção e prevenção e assistência, como no caso do PSE. 

5) Criação de uma Rede de Proteção Integral à comunidade escolar que agregue e integre todos os sistemas educacionais e redes de ensino do Nordeste para o compartilhamento de experiências exitosas locais, troca de saberes e de boas práticas entre as escolas da região. 

Vacinas contra o SARS-CoV-2 – Em relação ao desenvolvimento de uma vacina que previna a infecção pelo SARS-CoV-2, o Boletim traz dois esclarecimentos importantes: 

1 - O Comitê Científico não apoia e não recomenda, em hipótese alguma, estudos clínicos de qualquer vacina candidata (experimental), em qualquer fase de testagem, seja qual for a sua origem, sem que estes estudos tenham sido aprovados pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e pelo CONEP (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) e sem que todos os detalhes e protocolos (ou resultados de fases anteriores, em estudos clínicos de fase 2 e 3) tenham sido disponibilizados, amplamente, para análise independente da comunidade científica brasileira e internacional e, também, do próprio Comitê. 

2 - Em nenhum momento o Comitê Científico recomendou a governantes qualquer vacina candidata como possível opção para realização de estudos clínicos da fase 2 ou 3 no Nordeste. O Comitê Científico não foi consultado e não está envolvido em qualquer discussão ou negociação oficial com qualquer fornecedor privado ou governos estrangeiros, possuidores de vacinas experimentais, que desejam realizar testes no Brasil ou, em especial, no Nordeste. “Desta forma, o Comitê Científico não dispõe de qualquer informação técnica ou de qualquer outra natureza sobre eventuais acordos ou negociações envolvendo governos do Nordeste brasileiro e possíveis fornecedores estrangeiros de vacinas. Neste momento, o Comitê está fazendo consultas a especialistas em vacinas de instituições conceituadas no Brasil para que possa se posicionar sobre esse importante tema no futuro”, esclarece o Boletim 11. 

Estados - Com base em dados recentes, o Comitê constata que a pandemia atingiu seu pico em todos os Estados do Nordeste. Embora seja um dado favorável por apontar decréscimo de infestação pelo coronavírus, há o perigo de governantes e, principalmente, da população considerarem que o risco epidêmico está sob controle e que já podem retornar às atividades como aulas, comércio e eventos, que possam resultar em aglomerações. “Essa não é a realidade”, ressaltam os cientistas. 

“A redução do número do contaminados e, principalmente, de óbitos provavelmente seja consequência do que a classe médica e hospitais tenham aprendido com o avanço da pandemia em termos de medidas preventivas, tratamentos hospitalares e disponibilidade de leitos em UTIs”, avaliam os membros do Comitê. Eles alertam para o risco do uso indevido da informação de redução de casos de infectados e óbitos por parte de políticos inescrupulosos, que querem se eleger ou se reeleger como vereadores ou prefeitos, desprezando as recomendações científicas e da Organização Mundial de Saúde que preconizam critérios de segurança sanitária para o retorno das atividades “normais sob controle”, pois a COVID-19 continua fazendo vítimas, embora em menor número. 

A redução do número de infectados pode ser, também, porque grande parte da população assintomática tenha contraído a COVID-19 sem ter percebido. Teoricamente, seria uma quase imunidade coletiva (também chamada de rebanho). Estima-se que apenas 20% das pessoas infectadas precisam de tratamento médico diferenciado, ou seja, aproximadamente 80% das pessoas não apresentam sintomas e sequer sabem que foram contaminadas. Como no Brasil o número de testes está em torno de 2%, esta hipótese se torna mais provável, pois a subnotificação de casos de infectados continua altíssima. Entretanto, as pessoas assintomáticas portadoras da COVID-19 são transmissoras em potencial do vírus e por isso não se pode descartar uma nova onda da doença, pois não existe comprovação científica de que a distribuição do comportamento da pandemia seja unimodal, isto é, depois de atingir o pico (ponto de inflexão) começa a diminuir até zerar. “Sem esta certeza de unimodalidade, o risco de novos picos não está descartado”, alerta o Boletim. 

O Estado do Rio Grande do Norte é o único que apresenta decréscimo do risco epidêmico R(t). Algumas cidades dos Estados de Alagoas, Pernambuco e Sergipe já apresentam níveis de risco epidêmico de moderado a alto, mas isto não é garantia de que não possam retornar a valores altos. Atualmente, só o Estado de Sergipe apresentou um R(t)=1,0 em uma de suas médias calculadas por diferentes metodologias. Em função da possibilidade de uma segunda onda, as autoridades devem ter muita responsabilidade no afrouxamento de medidas de isolamento, insistir na obrigatoriedade do uso de máscaras e evitar quaisquer situações de aglomerações de pessoas. Como medida de segurança, a recomendação do Comitê é que seja considerado o maior R(t) calculado, em todas as situações. 

Quanto ao número de leitos em UTIs para tratamento de COVID-19, que no início da pandemia era insuficiente resultando em maior número de óbitos, agora é subutilizado em todos os Estados, mesmo com a desativação de vários hospitais emergenciais. 

Fundamentado nos dados recebidos dos Estados, o Comitê Científico, conclui e recomenda que: 

1 - Apesar da diminuição do número de infectados em todos os Estados, não existem evidências científicas baseadas nos dados enviados pelas Secretarias de Saúde dos Estados de que haja tendência irreversível de decréscimo de infectados pelo coronavírus. O risco de um novo crescimento dos níveis da pandemia (efeito bumerangue) ainda não está descartado; 

2 - O número de infectados está decaindo nos Estados possivelmente por conta de infecções de pessoas assintomáticas subnotificadas, das medidas de isolamento social (lockdown) efetivas e de mais hospitais equipados para enfrentar a pandemia; 

3 - As informações provenientes da Secretarias de Saúde Estaduais ainda não estão padronizadas e estão desencontradas das apresentadas por veículos de comunicação, o que induz nos dirigentes e na população a ilusão de que a pandemia está se encerrando, bem como aumenta o grau de incerteza na modelagem da pandemia por Estado: 

a) As Secretarias Estaduais de Saúde deveriam enviar os registros de números de infectados e óbitos correspondentes ao real dia em que ocorreram e não quando foram constatados nos exames laboratoriais. Isto facilitaria modelagens mais eficientes; 

b) Abertura de escolas para crianças de forma irrestrita é um grave erro, pois estudos científicos mostram que mesmo muito jovens as crianças têm alta probabilidade de serem infectadas e são potenciais transmissores da COVID-19, mesmo que não apresentem sintomas. 

“Vale a pena salientar que todos os Estados do Nordeste estão tratando a pandemia com as devidas precauções e que as Secretarias de Saúde estão colaborando com o fornecimento de dados para o Consórcio do Nordeste”, afirmou o coordenador Sergio Rezende. 

O Boletim, com 42 páginas, traz a análise específica de cada um dos nove Estados, com dados, gráficos e tabelas sobre número de casos, taxa de risco epidêmico (R(t), número de hospitalizações, óbitos e interiorização da pandemia. A íntegra do Boletim 11 está disponível no: https://www.comitecientifico-ne.com.br/