O rural sem culpa no cinema africano
Dedico esse texto a Ruth de Souza
O boi reagia a ir ao matadouro.
No corredor da morte, lançam-lhe uma pancada firme sobre a cabeça. Cortam-lhe a veia principal do pescoço e o sangue escorre em abundância inimaginável. Com as duas mãos em concha, uma senhora se aproxima, colhe o sangue em curso e oferece a porção ao filho que a bebe sem nenhum constrangimento. Vi esta cena em close up, quando criança, em Pesqueira.
Passados tantos anos, jamais imaginei que me defrontaria novamente com esse cenário escatológico, na abertura do filme africano Touki Bouki, a viagem da hiena (1973, 88 min.), primeiro longa-metragem do diretor senegalês Djibril Diop Mambéty (1945-1998). Fechei os olhos diante da tela, pois, de antemão, já “conhecia” todo plano-sequência. Estava na primeira sessão do curso Cinemas africanos em perspectivas, ministrado pela professora espanhola e crítica de cinema, Beatriz Leal Riesco, no CineSesc São Paulo.
Durante a Mostra de cinemas africanos (10 a 17 de julho último), que coincidiu com a realização do curso, fui assistir ao Touki Bouki na íntegra e desta vez abri os olhos à cena inicial do filme. Quis tirar a prova do que previra. Lá não está a criança bebendo o sangue fresco. Entretanto, a forma como o animal é abatido, é verossimilhante. Perguntei a um senegalês na Rua Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo, ao comprar um corte de tecido africano, que ilustra esta crônica, se a cena que vi quando criança existia no Senegal. Sim, disse-me ele, o “sangue quente” é para dar sorte às crianças!
A grande sala do ato final dessa cena, encharcada de sangue por todos os lados, no teto, nas paredes, no chão e nos corpos dos atores, dá o tom do que iria se encontrar nessa grande obra de Mambéty: o conflito entre o rural agrário tradicional e a modernidade herdada do colonialismo francês no Senegal. O filme obteve prêmio de crítica no Festival de Cannes de 1973.
Entretanto, entre esses dois universos não se observa, em Touki Bouki, nenhuma negação ou adesão deliberada a um ou a outro ambiente cultural e vice-versa. Na verdade, Mambéty trabalha numa perspectiva do hibridismo cultural, cujo símbolo principal no filme está representado pela motocicleta, pilotada pelos seus personagens principais, Mory e Anta. Alusão à rebeldia, à liberdade, à modernidade - que vem de fora -, a moto tem encrustada no guidom uma cabeça de touro com chifres e, na parte traseira, a cruz Dogon, que evoca tradições africanas religiosas, embora haja outras interpretações.
No desenrolar da narrativa – a busca do casal em conseguir dinheiro para viver em Paris –, são observadas cenas alusivas a diversas mesclas interculturais nos figurinos, na trilha sonora, nas metáforas dos pássaros que voam, mas voltam ao ninho, entre tantas outras, que não há como não se lembrar de Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade e de Néstor García Canclini em Culturas híbridas.
Mambéty não é maniqueísta, nem preconceituoso, ao tratar o mundo rural tradicional e o moderno no Senegal, após o país ficar independente da França, em 1960. Aspecto igualmente observado no extraordinário Hienas (1992, 110 min.), com seus deslumbrantes figurinos africanos, indicado para o prêmio Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1992.
Ao contrário de Touki Bouki, Hienas não aborda a fuga de seus personagens, mas o retorno de uma mulher, Linguère Reamatou, a sua aldeia natal, para se vingar do antigo namorado, que a abandonara grávida, aos 16 anos. Para sobreviver, prostituiu-se e enfrentou toda ordem de desatinos até se tornar milionária. Envelhecida, com uma mão e uma perna amputadas, Reamatou desce do trem e passa a doar dinheiro e eletrodomésticos à população pobre local, com o único objetivo de obter o apoio da aldeia no julgamento de seu desafeto amoroso. O prato frio da vingança é saboreado com a sentença de morte desse homem, sua antiga e, talvez, eterna paixão.
Costurando a narrativa com as cores e desenhos dos tecidos tradicionais africanos, Hienas faz uma crítica ferrenha e sagaz ao consumo desenfreado, ao neocolonialismo no Senegal e à violência contra as mulheres na sociedade patriarcal senegalesa. Em contrapartida, Hienas revela a força dessas mulheres por justiça social. As Mariele estão todas ali representadas!
É nessa chave analítica, portanto, que Mambéty não faz escolha entre alçar voo (ao moderno) ou voltar para o ninho (o rural), como salienta Beatriz Riesco. A visão sobre o rural não é a de um lugar a ser superado, mas de convivência (e de conflito) com o moderno. Mas esta perspectiva não isenta esses universos da crítica, quando oprimem homens e mulheres. É o caso revelado em Touki Bouki, ao tratar da opção dos dois jovens por Paris – ce petit coin de paradis –, em virtude das pressões socioculturais locais. Numa das estrofes da canção Paris, Paris, de 1949, que compõe a trilha sonora deste filme, faz alusão, na voz de Josephine Baker, a essa posição estética do diretor:
Não me pergunte se eu gosto de Paris
Tanto quanto perguntar ao pássaro no espaço
Se ele gosta do céu ou se ele gosta do ninho.
Ao fim e ao cabo desse meu primeiro contato com o cinema africano, sob a orientação de um curso, tive que avaliar o tamanho da minha ignorância, não apenas em relação à cinematografia africana e diaspórica, rica em multiplicidade de vozes, tão pouco divulgada no Brasil (a Nigéria, a Nollywood africana, possui a segunda indústria mundial em número de filmes produzidos), mas, e sobretudo, em relação à riqueza e diversidade histórico-cultural daquele continente.
Ao considerar a máxima de que se você deseja conhecer um país assista ao seu cinema, saí à cata de filmes africanos nos sebos de São Paulo e nos portais de cinema da Internet. Reuni parte da cinematografia do senegalês Ousmane Sembène (1923-2007), pela sua importância internacional como escritor e cineasta, para continuar nesse caminho à África. Abrir-se a este continente me parece essencial, como forma de conhecimento e de reconhecimento da importância africana em nós e na nossa cultura, para além dos estereótipos, dos preconceitos e da violência comumente observados de ambos os lados do Atlântico. Que o diga o trágico La noire de, dirigido por Ousmane Sembène, em 1966.
Bairro de Campos Elíseos, SP, 6 de agosto de 2019.
Referências
Canção Paris, Paris: https://www.youtube.com/watch?v=c419ZQ9rbkc
CANCLINI, Néstor Grarcía. Culturas híbridas. São Paulo : Edusp, 1997.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 4 edição, Rio de Janeiro : DP&A, 2000.
Hienas, trailer do filme: https://www.youtube.com/watch?v=FqO9FFwIAGA
La noire de ... Filme completo de Ousmane Sembène, legendado: https://www.youtube.com/watch?v=YMDg2UAyXSs
Touki Bouki, filme completo legendado: https://www.youtube.com/watch?v=u9e1C0k7sdg