O rural, como categoria de análise, tem assumido, nas últimas décadas, em solo nacional e internacional, um debate estrondoso, diverso e, muitas vezes, contraditório, em virtude dos processos de mundialização das culturas e dos mercados. A artificialização da natureza, a exploração segmentada da economia rural, a padronização do consumo (material e simbólico) e o emagrecimento do Estado na vida pública, em detrimento do meio ambiente e das economias nacionais, relegaram (e relegam) amplos territórios tradicionais da sociedade brasileira à exclusão social.
Em contrapartida, setores contra-hegemônicos se articulam ao redor do mundo, como salienta Boaventura de Sousa Santos, para reafirmar os modos de vida das culturas populares locais. No Brasil, fundamentais têm sido as contribuições dos movimentos sociais no campo (jovens, agricultores e agricultoras, assentamentos de reforma agrária, pescadores e pescadoras, aquicultores familiares, silvicultores, quilombolas, índios) que, com o apoio das organizações não governamentais, universidades, sindicatos, associações, cooperativas, coletivos não institucionalizados, estão configurando outra realidade no meio rural. A perspectiva adotada é a do desenvolvimento endógeno, como uma das saídas para pensar, produzir e preservar, coletivamente, as potencialidades econômicas, culturais e ambientais do meio em questão.
Se, no passado, as regiões rurais eram vistas como o lugar do “atraso” sociocultural, do “arcaico” e da “baixa” produtividade agropecuária – aspectos que reforçaram velhos estereótipos e preconceitos –, agora, os modos de ver são outros, diversos e complexos. Oportuno repetir aqui o que escrevi há cinco anos na Razón y Palabra: “o dinamismo sociocultural e econômico do meio rural brasileiro se configura hoje pela agricultura familiar e camponesa, pela agricultura de base orgânica, pela pesca artesanal, pela aquicultura familiar, pelo agronegócio, pelo artesanato, pela culinária, pela dança, pela música, pelo turismo rural, pelas imbricações das culturas populares com a cultura hegemônica e suas hibridizações culturais, pela inclusão digital, pela interiorização do ensino superior, pelos serviços e pelas indústrias. Vai além, portanto, como se refere Maria Nazareth Wanderley (2009, p. 264-289), da ‘visão depreciativa’ do meio rural, como um lugar ‘fonte de problemas – desenraizamento, miséria, isolamento, currais eleitorais, etc.’”
Toda essa riqueza incalculável, do ponto de vista sociocultural, econômico, ambiental e do debate acadêmico, aqui brevemente resumida, vem sendo abandonada pela Universidade Federal Rural de Pernambuco, anos após anos, dia após dia, como assinalei no artigo Comunicação e meio rural contemporâneo na formação universitária: a experiência da Universidade Federal Rural de Pernambuco. O rural, que construiu o perfil da UFRPE em 100 anos de sua história, paradoxalmente vem sendo extraído das matrizes curriculares dos seus cursos de graduação e pós-graduação, como uma espécie de verbete maldito!
Sob os olhares complacentes dos gestores da Universidade, estamos matando a galinha dos ovos de ouro, o nosso pioneirismo e protagonismo históricos no âmbito dos estudos rurais. O exemplo mais recente se encontra na nova proposta do Projeto Pedagógico do curso de Ciências do Consumo, que subtraiu a disciplina Extensão Rural do elenco das obrigatórias, uma das poucas janelas que restam na UFRPE, para enxergar o rural do século XXI.
A impressão que fica desta mais nova amputação acadêmica é a de que as questões relativas ao campo só se sustentavam na nossa Universidade, quando a produção açucareira ainda era o lugar-fonte de riqueza. Diga-se de passagem, e de pobreza e miséria simultâneas. Basta se debruçar sobre Elegia para uma re(li)gião, de Chico de Oliveira, falecido recentemente, para compreender esta contradição. Vem daí, possivelmente, o falatório, nem um pouco acadêmico, de que o rural, e a Extensão Rural por tabela, não tem mais razão de existir numa Universidade que há muito abandonou o rural, isto é, rural reduzido à visão dos “intelectuais acadêmicos” do açúcar. É aí onde reside o engano (estou sendo gentil), o preconceito contra o rural e, muitas vezes, a má-fé.
Graças aos esforços de uma rede de pesquisadores da extensão rural pós-paulofreiriana, de se apropriar da comunicação, da economia agrícola, da antropologia, da sociologia rural, da agroecologia, da geografia e ecologia humanas, do serviço social, da educação no campo e, até mesmo, da demografia (tão cara aos americanos para compreender as migrações internas para cidades rurais), a Extensão Rural ressignificou seus aportes teóricos e suas práticas de educação informal no campo. Na UFRPE, são mais de 50 anos de serviços prestados pela Extensão Rural na pesquisa, na formação de jovens e no apoio às atividades de extensão universitária.
Ao dar as costas a essa expertise consolidada, sem consultar os dez professores doutores da área de Extensão Rural da UFRPE, o curso Ciências do Consumo na pretensão de renovar seu Projeto Pedagógico na verdade o envelheceu.
Em um país como o nosso, com mais de 80% de municípios rurais, como afirma José Eli da Veiga, não podemos nos dar ao luxo de privar futuros profissionais, numa universidade dita rural, do acesso a disciplinas que abordam o rural na dimensão contemporânea exigida. Seria cômico, se não fosse trágico, retirar de uma matriz curricular obrigatória a disciplina Extensão Rural, no momento em que se busca implementar a curricularização da extensão universitária nos cursos de graduação, com ao menos 10% de sua carga horária total, como prevê a Resolução 220/2016 da UFRPE.
Se o consumo serve para pensar, como teorizou Néstor García Canclini, no seu já clássico Consumidores e cidadãos, talvez seja o momento de o curso Ciências do Consumo parar para pensar e, quem sabe, refazer caminhos.
Referências
CALLOU, Angelo Brás Fernandes; SILVA, Aleksander Victor Galdino da. Comunicação e meio rural contemporâneo na formação universitária: a experiência da Universidade Federal Rural de Pernambuco – Brasil. Revista Razón y Palabra, nº 87, 2014, p.333-344. https://www.revistarazonypalabra.org/index.php/ryp/article/view/594
CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro : UFRJ, 1995.
OLIVEIRA, Francisco de. Elegia para uma re(li)gião. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1993.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Os processos da globalização. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). A globalização e as ciências sociais. São Paulo : Cortez, 2ª edição, 2002. p.25-102.
VEIGA, José Eli da. Cidades imaginárias. O Brasil é menos urbano do que se calcula. Campina/SP: Autores Associados, 2002. 304 p.