Mais uma reviravolta na novela envolvendo o governo de Pernambuco e a peça "O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu": nesta segunda (9), o Ministério Público de Pernambuco (MPPE) publicou, no Diário Oficial, uma recomendação para que a Secretaria Estadual de Cultura reinclua a peça na programação do 28° Festival de Inverno de Garanhuns.
A apresentação havia sido cancelada no último dia 30, após intensa pressão de setores religiosos do município - inclusive de seu prefeito, Izaías Régis, que se negou a ceder o espaço do Centro Cultural de Garanhuns para que houvesse a encenação.
Ao longo de quatro páginas, o promotor Domingos Sávio Pereira Agra, da 2ª Promotoria de Justiça de Defesa da Cidadania de Garanhuns, historiou todos os detalhes do caso e determinou que o secretário estadual de Cultura, Marcelino Granja, e a presidente da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), Márcia Souto, readmitam o espetáculo na grade oficial do FIG e promovam o diálogo com os "eventuais parceiros que mantenham resistência à sua apresentação", procurando demonstrar o "caráter respeitoso" da obra.
Ele também se dirigiu aos governos de Garanhuns e de Pernambuco, pedindo para que se estimule a tolerância e a luta contra a homofobia, através de campanhas, concursos e outros meios. A recomendação foi assinada em conjunto com a Comissão de Promoção dos Direitos Homoafetivos do MPPE, que está em funcionamento desde 2012.
"Nosso propósito é reafirmar o compromisso do MPPE com direitos fundamentais que estão previstos na Constituição brasileira e em tratados internacionais, que defendem uma sociedade livre, pacífica e pluralista. O Estado não pode se submeter à discriminação, e sim promover a superação dela", afirmou o promotor à reportagem da Folha de Pernambuco, acrescentando que é católico e, apesar de cristão, não vê nenhuma ofensa a sua fé por conta da peça.
O promotor estabeleceu um prazo de dez dias para que haja uma resposta por escrito a respeito da ordem. "A peça passou por um processo legal de seleção e não pode ser cancelada com base em polêmicas infundadas. Caso a recomendação não seja observada, o secretário de Cultura e a presidente da Fundarpe podem ser acionados por improbidade administrativa e desrespeito aos princípios da administração pública de legalidade, impessoalidade e moralidade administrativa", disse Domingos Agra. "Não há nenhum deboche ou jocosidade. Pelo contrário, a peça prega a reflexão sobre o preconceito e a violência praticados contra a população transexual", destacou.
Rumo a Garanhuns
"O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu" é estrelada pela atriz transexual Renata Carvalho, que faz uma releitura de Jesus como se ele vivesse nos dias atuais como uma travesti, partindo da ideia de que Cristo viveria entre os marginalizados.
"Pelo que o promotor também conseguiu enxergar, fica claro que não houve motivo para a censura que sofremos e que fere o Estado de Direito, e que parte do pressuposto que a peça é indecente pela corporificação de Jesus num corpo transexual", disse Renata à reportagem, por telefone.
Ela frisou que passou por um processo de curadoria legal até ser selecionada para se apresentar no festival, e que isso não pode ser cancelado "de repente e por conta de achismos".
Renata também comemora o fato de que virá a Garanhuns de qualquer jeito, já que mesmo que o governo decida desafiar a orientação do MPPE, a apresentação vai acontecer de forma independente: um grupo se mobilizou via redes sociais e já arrecadou quase o dobro do valor necessário para trazer a artista e sua equipe, no fim do mês de julho.
Procurado para se pronunciar sobre o assunto, o secretário de Cultura, Marcelino Granja, limitou-se a informar que o Governo vai analisar e responder à recomendação, dentro do prazo determinado. "Acredito apenas que o Ministério Público chegou ao debate com muito atraso", finalizou.
Crowfunding - Um dia após ter aberto uma página de financiamento coletivo, o grupo que está organizando por conta própria a vinda da peça "O Evangelho segundo Jesus, a Rainha do Céu" para Garanhuns canta vitória: já conseguiram arrecadar mais do que os R$ 6 mil inicialmente pretendidos.
"É a resposta do povo a essa decisão arbitrária do prefeito e do governo de Pernambuco", comemora o ator Joesile Cordeiro, um dos 50 membros do grupo responsável pela ação. No Facebook, o evento que divulga o movimento já congrega cerca de dois mil integrantes."Queremos desconstruir a versão da mídia de Garanhuns de que a população não quer que a peça aconteça. Esse recorte que eles apontam não representa o que está realmente acontecendo aqui", denuncia.
As contribuições vieram de 112 pessoas oriundas de onze estados brasileiros diferentes (inclusive de lugares geograficamente distantes do Agreste pernambucano, como Amazonas, Tocantins e Rio Grande do Sul). Agora que a meta inicial foi batida e já está garantido um valor para translado, hospedagem e alimentação da equipe cênica, a página vai continuar aberta durante os oito dias previstos.
"A atriz e sua equipe tinham se oferecido para vir de graça, por entender que esta era uma questão política essencial. Mas é mais que merecido que recebam um cachê. Além disso, há custos extras em relação à apresentação", adianta Joesile.
Segundo ele, o espetáculo não precisa de muitos recursos cenográficos, mas será necessário contratar serviços de logística e de segurança, já que a peça tem sido alvo de inúmeras expressões de intolerância. "Estamos printando e guardando ameaças que vêm sendo proferidas nas redes sociais, para tomar providências legais se for necessário", destaca. Alguns exemplos podem ser vistos na galeria desta matéria, e contêm palavras de baixo calão e de transfobia.
O grupo vem realizando visitas técnicas a vários espaços em Garanhuns, mas por enquanto prefere não divulgar onde o evento vai acontecer por temer retaliações. "O movimento tem sido muito bonito. Algumas pessoas chegaram a oferecer suas próprias casas para sediar o evento, mas a ideia é encontrar um local mais amplo, até porque a demanda será grande", adianta.
Joesile contou à reportagem da Folha de Pernambuco que o clima na cidade está delicado. "Quando o prefeito Izaías Régis se posicionou de forma tão veemente contra o espetáculo, terminou direcionando por tabela as pessoas a aderirem a um discurso de ódio que distorce tudo aquilo a que a peça se propõe", afirma.
"Estamos lutando para sermos consideradas seres humanos, e vejo com muita felicidade essa movimentação dos artistas. Queria que esse movimento tivesse um grande alcance nacional, porque a gente não pode deixar que esse tipo de censura volte ao Brasil", disse a estrela da peça, a atriz transexual Renata Carvalho.
Paralelamente à movimentação, artistas vêm se mobilizando para definir que posição devem tomar em relação ao que consideram um ato de censura. Alguns devem protestar, outros pregam o boicote. Nesta terça-feira (3), o ator Cláudio Ferrário utilizou as redes sociais para anunciar que "como cidadão e artista, diante da censura, da truculência, do conservadorismo e da misoginia" do governo estadual, resolveu desistir de participar da leitura do romance "Bernarda Soledade", de Raimundo Carrero.
"Como aceitar que um espetáculo licitado e aprovado para participar de um festival seja, simplesmente, retirado de cena por conta de arroubos de falsos censores da moralidade?", indaga Cláudio, para quem "ir a Garanhuns seria compactuar com tudo isso".
Já o também ator Rodrigo Dourado é contra a ideia do boicote. "Boicote pela metade não é boicote, é 'limpeza'. Imagina se nós, de teatro, abandonarmos a programação. Imagina se os artistas LGBTs do festival abandonarem a mostra. Que alegria seria para as mesmas pessoas que censuraram o 'Evangelho' ter um FIG higienizado, sem teatro e sem LGBTs", critica.
Entenda o caso - A polêmica envolvendo a peça teatral começou na última sexta-feira (29), um dia após a Secretaria Estadual de Cultura anunciar a programação do 28º Festival de Inverno de Garanhuns (cujo tema este ano, por ironia, é a liberdade). Após uma quebra de braço com o secretário Marcelino Granja, que queria manter o espetáculo, o prefeito Izaías Régis, alegando questões religiosas, proibiu que o Centro Cultural do município fosse utilizado na apresentação.
No sábado (30), por pressão do deputado federal Pastor Eurico (ligado à Assembleia de Deus), o governador Paulo Câmara voltou atrás e cancelou a peça, dividindo opiniões e levando os artistas a se organizarem para combater a decisão, arrecadando verba para trazer a peça de forma independente através do link www.catarse.me/rainhajesus
A peça "O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu" é estrelada pela atriz transexual Renata Carvalho, que faz uma releitura de Jesuscomo se ele vivesse nos dias atuais como uma travesti. O espetáculo foi impedido de ser apresentado anteriormente - duas vezes por ordem judicial, em Jundiaí (SP) e em Salvador (BA), e uma por ordem do pastor e prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, que da mesma forma que o prefeito de Garanhuns proibiu o uso de um espaço cênico municipal
Com informações da Folha de Pernambuco