Em nota divulgada nesta quarta-feira (19), a Organização Internacional do Trabalho (OIT) alerta que a Portaria n. 1129, publicada neste mês (16) pelo governo brasileiro, pode “interromper a trajetória de sucesso” do Brasil no combate ao trabalho escravo. A medida do Ministério do Trabalho altera o conceito legal que define essa violação, o que pode, segundo a OIT, limitar e enfraquecer ações de fiscalização. Agência da ONU também criticou mudanças sobre a “Lista Suja”.
Para a agência das Nações Unidas, normativa poderá ter, por consequência, o “aumento da desproteção e vulnerabilidade de uma parcela da população brasileira já muito fragilizada”. Segundo a OIT, modificações na noção de trabalho análogo à escravidão devem ser feitas a partir de um amplo debate democrático. Caso contrário, revisões podem resultar em conceitos que não caracterizam adequadamente a escravidão contemporânea.
“Seria lamentável ver o país recuar com relação aos instrumentos já estabelecidos, sem substitui-los ou complementá-los por outros que tenham o objetivo de trazer ainda mais proteção aos trabalhadores e trabalhadoras”, defende a OIT.
O pronunciamento aponta que, antes da portaria, o Brasil tinha uma definição conceitual de trabalho escravo moderna e alinhada às Convenções internacionais da OIT. A agência da ONU previne “que os eventuais desdobramentos desta Portaria poderão ser objeto de análise pelo Comitê de Peritos da Organização Internacional do Trabalho”.
A OIT acrescenta que, com a diretiva do Ministério do Trabalho, o Brasil corre o risco de não cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (ODS), um conjunto de metas assumidas pelo país e todos os outros 192 Estados-membros das Nações Unidas.
Sobre a “Lista Suja”, o organismo internacional reitera o apelo de seu Comitê de Peritos, que, em 2016, encorajou o governo brasileiro a continuar tomando todas as medidas necessárias para que o documento fosse publicado regularmente e da maneira mais transparente possível. “É fundamental que a definição da Lista seja um ato técnico e isento, oriundo dos profissionais de fiscalização que possuem conhecimento dos fatos encontrados”, afirma a OIT.
Confira a nota na íntegra abaixo:
Vinte anos de trajetória no combate à escravidão contemporânea tornaram o Brasil uma referência mundial no tema. Instrumentos e mecanismos foram criados para lidar com a gravidade e complexidade do problema: Comissões Nacional e estaduais, “Lista Suja”, Grupos Especiais de Fiscalização Móvel, Pacto Nacional, indenizações por danos morais coletivos e uma definição conceitual de trabalho escravo moderna e alinhada às Convenções internacionais da OIT n. 29 e 105. Essas conquistas foram reiteradamente reconhecidas pela comunidade internacional e pela Organização das Nações Unidas (ONU) como exemplos de boas práticas, tendo sido inclusive objetos de intercâmbio de experiências em ações de Cooperação Sul-Sul. Além disso, é importante ressaltar que a atitude proativa e transparente do Brasil tem sido um elemento importante para as relações de comércio exterior.
No entanto, com a edição da Portaria n. 1129, de 13/10/2017, o Brasil corre o risco de interromper essa trajetória de sucesso que o tornou um modelo de liderança no combate ao trabalho escravo para a região e para o mundo. Os eventuais desdobramentos desta Portaria poderão ser objeto de análise pelo Comitê de Peritos da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A gravidade da situação está no possível enfraquecimento e limitação da efetiva atuação da fiscalização do trabalho, com o consequente aumento da desproteção e vulnerabilidade de uma parcela da população brasileira já muito fragilizada. Além disso, a OIT também lamenta o aumento do risco de que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU não sejam alcançados no Brasil, no que se refere à erradicação do trabalho análogo ao de escravo.
Algumas recomendações feitas pelo Comitê de Peritos da OIT ao governo brasileiro, por meio de seu Relatório Anual publicado em 2016, são base para essa nota e para o reforço da disposição da OIT em apoiar o país no crescimento econômico com justiça social.
Com relação ao conceito de trabalho escravo, o Comitê recomendou que uma eventual alteração não se constituísse como um obstáculo, na prática, às ações tomadas pelas autoridades competentes para identificar e proteger as vítimas de todas as situações de trabalho forçado, bem como à imposição de penalidades aos perpetradores do crime. O Comitê encorajou o governo brasileiro a consultar as autoridades mais envolvidas na temática, em particular a auditoria fiscal do trabalho, o Ministério Público e a Justiça Trabalhista, na discussão sobre uma possível alteração do conceito. Modificar ou limitar o conceito de submeter uma pessoa a situação análoga à de escravo sem um amplo debate democrático sobre o assunto pode resultar num novo conceito que não caracterize de fato a escravidão contemporânea, diminuindo a efetividade das forças de inspeção e colocando um número muito elevado de pessoas, exploradas e violadas na sua dignidade, em uma posição de desproteção, contribuindo inclusive para o aumento da pobreza em várias regiões do país.
No que concerne à “Lista Suja”, o Comitê ressaltou que o cadastro é uma importante ferramenta para a sociedade, mas também para as empresas, na medida em que se constitui como um mecanismo de monitoramento de cadeias produtivas, amplamente utilizado por importantes setores econômicos preocupados com a efetiva conformidade trabalhista. Dessa maneira, o Comitê encorajou que o governo continuasse tomando todas as medidas necessárias para que a Lista fosse publicada regularmente e da maneira mais transparente possível. É fundamental que a definição da Lista seja um ato técnico e isento, oriundo dos profissionais de fiscalização que possuem conhecimento dos fatos encontrados.
Quanto à inspeção do trabalho, a OIT já louvou o fato de que mais de 50 mil trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão nos últimos 20 anos no Brasil, graças à atuação dos Grupos Especiais de Fiscalização Móvel, que são peça fundamental no enfrentamento ao trabalho escravo no país. No seu relatório, o Comitê notou a redução do número de unidades móveis e recomendou ao governo brasileiro a adoção de providências para dotar a inspeção de recursos humanos e financeiros suficientes para o cumprimento de sua missão. A situação de exploração das pessoas infelizmente continua existindo tanto em áreas urbanas quanto rurais. Sendo assim, é fundamental que a inspeção do trabalho siga sendo fortalecida, com recursos humanos e materiais disponíveis e autonomia para a realização de um trabalho efetivo.
Em seu relatório, o Comitê de Peritos também destacou a importância de enfrentar a impunidade e pediu ao governo brasileiro que continuasse apoiando a ação de autoridades envolvidas no enfrentamento ao trabalho escravo, como a fiscalização do trabalho e o Ministério Público do Trabalho, este especialmente pela sua capacidade de impor penalidades financeiras via ações públicas, que são revertidas para a reparação dos danos sofridos pelas vítimas de trabalho escravo.
Por fim, cabe lembrar que o Protocolo da OIT adicional à Convenção n. 29, e sua Recomendação, ambos de 2014 , estabelecem que os governos devem adotar medidas para promover a devida diligência para combater o trabalho escravo, tanto na esfera pública, como na esfera privada. A tendência global claramente aponta para esta direção e seria lamentável ver o país recuar com relação aos instrumentos já estabelecidos, sem substitui-los ou complementá-los por outros que tenham o objetivo de trazer ainda mais proteção aos trabalhadores e trabalhadoras, garantindo assim o respeito à dignidade da pessoa humana.
Com cerca de 25 milhões de vítimas de trabalho forçado no mundo, a OIT destaca a necessidade de reforçar as ações de combate à escravidão em nível nacional, em linha com a meta 8.7 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU: “tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças-soldado, e até 2025 acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas”.