Em votação apertada, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quarta-feira (27/09) rejeitaruma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) que pedia que o ensino religioso nas escolas públicas não promovesse uma determinada fé ou denominação, limitando-se a apresentar as existentes.
Com a decisão, o modelo "confessional", em que os professores podem ser padres ou pastores e influenciar a vida religiosa dos alunos, continuará a ser usado nas escolas, como acontece em várias redes estaduais e municipais. As escolas também continuam livres para optar pelo modelo "não confessional".
Para o especialista Luiz Antônio Cunha, professor emérito da UFRJ, a decisão é, sobretudo, uma vitória da Igreja Católica, que tem mais recursos e estrutura para formar professores e era uma das maiores interessadas na derrota da ADI. Cunha é membro do Observatório da Laicidade na Educação e também da Ação Educativa, organizações que constaram como amicus curiae (parte não envolvidas no processo, mas que fornecem argumentos para o julgamento) e defendiam a ADI.
Segundo Cunha, as igrejas evangélicas não estão interessadas num modelo de catequização nas escolas públicas, em parte por temer a vantagem dos católicos na área. Dessa forma, a questão não era apenas uma disputa entre laicos e religiosos, mas também entre católicos e evangélicos.
DW Brasil - Como o senhor encarou a decisão do Supremo?
Luiz Antônio Cunha - Foi uma decisão previsível. Devido não só aos termos colocados pela ADI, como também pelo peso da Igreja Católica nessa questão. É preciso dizer que a Igreja Católica é a principal interessada no ensino religioso nas escolas públicas, qualquer que seja a modalidade (confessional ou de história das religiões).
Um dos pontos importantes era o pedido de supressão na Lei de Diretrizes da Educação da qualificação do ensino religioso nas escolas públicas como "parte integrante da formação básica do cidadão". Isso nós consideramos uma impropriedade do ponto de vista pedagógico e político. No entanto, foi mantido e reforçado pelo Supremo. É a ideia de que o cidadão precisa ser religioso, e quem não é vai ter uma educação parcial ou errada. Essa foi efetivamente a derrota.
Foi então uma vitória dos religiosos sobre os defensores do Estado laico?
Foi uma vitória dos católicos. Pouca gente sabe que as igrejas evangélicas são, em sua maioria, contrárias ao ensino religioso nas escolas públicas do Brasil, sob qualquer modalidade. Isso ficou muito claro na audiência pública do caso em 2015. Denominações do protestantismo de missão, como os luteranos, presbiterianos e batistas, esses são tradicionalmente contrários ao ensino religioso nas escolas.
Elas acreditam que "formação religiosa fazemos nós nas escolas dominicais". Mesmo no âmbito dos evangélicos pentecostais existe uma grande divisão. Uma das denominações que tem mais potencial político, a Igreja Universal do Reino do Deus, é oficialmente contrária ao ensino religioso nas escolas públicas. A Assembleia de Deus, que é maior e mais ativa politicamente, está dividida.
O que explica essa posição dos evangélicos?
Uma das hipóteses é que as igrejas evangélicas de missão temiam a competição dos católicos. Mas também existem questões mais recentes, como, por exemplo, a fragmentação dessas denominações em comparação ao centralismo católico. Outra coisa é a dificuldade dessas instituições para montar uma estrutura para a formação de professores. Elas não têm todo o arsenal que os católicos têm à disposição.
Essas são explicações institucionais. Mas há também elementos ideológicos.
Algumas denominações também entendem que o espaço de formação é mais ativo fora da escola do que dentro dela, que a religião é mais aceitável para os jovens se o trabalho for feito fora do ambiente escolar. Fora então de um ambiente mais rígido, vinculado a horários ou metodologias pré-fixadas. Elas entendem que o espaço do templo ou da televisão ou do rádio podem ser mais ativos.
Quais são as consequências dessa decisão?
No curto prazo é a manutenção do que já existe, inclusive do ensino confessional onde ele já está em vigor, como na rede estadual do Rio de Janeiro e na municipal carioca, assim como na de outros estados. No futuro, o que pode acontecer é ampliar a disputa do campo religioso em diferentes redes de ensino. Vamos ver um aumento da disputa de agentes religiosos no campo educacional.
Então os principais lados da disputa não são os defensores do Estado laico e os religiosos, mas dois campos religiosos?
Pois é. Nós estamos, no Brasil, numa situação peculiar. Nós tivemos o ponto máximo da laicidade em 1889. Depois disso tivemos um retrocesso que ainda não parou. É um processo de longa duração. O movimento laico hoje no Brasil começa a se desenvolver em reação a isso, de uma maneira diferente daquele que existiu no século 19. Naquela época era principalmente um movimento das elites intelectuais e políticas. Atualmente, além do movimento das elites, temos os movimentos sociais.
Quais são as opções que restam aos defensores do Estado laico?
O caminho é o mesmo que tínhamos antes dessa ADI. Ou seja, continuar a lutar pela laicidade do Estado e pela difusão desse conceito. Há uma ignorância generalizada sobre isso até mesmo entre as elites intelectuais. Muita gente pensa que a laicidade do Estado é sinônimo de um Estado inter-religioso, de um Estado que favorece todas as religiões. É uma ideia falsa.
Outro caminho é lutar para que a difusão do ensino religioso seja facultativa dentro das escolas. Na maior parte das escolas públicas que oferecem ensino religioso, ele é na prática obrigatório. Os alunos não costumam ser informados de que se trata de disciplina facultativa e também não há outras opções no mesmo horário. É preciso esclarecer tudo isso. E é uma tarefa de longo prazo, que vai demorar muito tempo.
Outro ponto é a luta política diária no âmbito do Executivo, do Legislativo e do Judiciário em todos os projetos de lei que aparecerem. Nem tudo dependia do resultado dessa ADI. Nós não apostamos todas as fichas nisso. Nossa posição é pela laicidade, e não apenas sobre como deve ser o ensino religioso.
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