terça-feira, 26 de setembro de 2017

#VcNoBlog Crônica - "Na Esquina"

Ontem resolvi convidar geral pra escrever aqui no blog sobre o que quisesse: causa animal, política, economia, literatura, etc. A primeira que topou participar foi a jornalista e pós-graduada em Marketing,  Ana Claudia Nogueira, de 46 anos, a jovem senhora sorridente da foto.
Pra mim vai ser uma honra essa estreia, pois Ana foi minha chefe na Secretaria de Imprensa de Camaragibe, entre junho de 1999 e março de 2000. Da relação profissional nasceu uma grande amizade. Sigam o exemplo da Ana e entre nessa: #VcNoBlog


Na Esquina

Todos os dias eu o encontrava na esquina da minha rua. Sentado em cima de um papelão cuidadosamente estendido, a planta dos pés rosinha como pés de bebê. Barba grande, totalmente branca, o que me levou secretamente a apelidá-lo de Papai Noel. Ao seu lado, livros empilhados no chão mesmo, uns oito. Do outro lado, um cobertor cuidadosamente dobrado e colocado em cima de algumas coisas que não consegui distinguir - penso que algumas peças de roupa ou talvez mantimentos podiam estar ali entre o chão e o cobertor.

Morria de vontade de abordá-lo, saber que livro era aquele que lia tão absorto, que o fazia aparentemente esquecer que estava sentado no chão quente debaixo da marquise de uma loja do tipo quitanda em pleno centro do Recife. Parecia não se dar conta dos pivetes que passavam a todo instante, algumas vezes soltando graça, ameaçando, gritando. Aquele livro tão poderoso, que eu não sabia qual era, fazia com que o pobre mendigo ignorasse fome, sede, miséria absoluta. “Que livro seria aquele?”, me perguntava.

O homem era branco, de rosto muito afilado, face rosada. Um tipo bem incomum. Devia ter uns 50 anos. Era pouco menos gordo que Papai Noel de Shopping. Claramente educado, tinha modos gentis. Imaginei mil histórias para explicar aquele abandono de si mesmo: seria um ermitão, um desiludido, um viúvo, um doente desenganado, enlouquecera depois de velho, perdera a memória, fugia de uma família incompreensiva, falido, foi colocado para fora de casa após uma traição, cometeu um crime, seria um filósofo, alguém que descobriu que os bens materiais não trazem felicidade... Papai Noel era um exercício criativo diário para mim.

Com quase dois meses de estadia na esquina da rua, o comportamento do meu vizinho começou a mudar. Estava mais aberto para o mundo, menos focado em suas leituras, mais atento ao que acontecia ao redor. Conversava com os moleques de rua. Aliás, conversava muito com os moleques de rua. Vez por outra o flagrei tomando cachaça. Os pés, antes admiravelmente cor de rosa como pele de bebê, agora estavam pretos como quem pisa em piche. A barba branca começou a amarelar. Seus parcos pertences, antes cuidadosamente arrumados, agora estavam dispostos em uma trouxa de cobertor imundo. E ele falava alto.

Menos de três meses e Papai Noel virou o mendigo bêbado da esquina, o cara que soltava graça para todo mundo que passava, grunhia indignidades, gargalhava alto, era colocado para fora do local pelo segurança da quitanda, vivia bêbado e cheirando cola com um bocado de meninos e adolescentes da rua. Nem sinal dos livros, nem do leitor. De longe a gente sentia o seu fedor.

Certa noite eu vi. Papai Noel estava transando com uma menina de, no máximo, 12 anos. Menina de rua. Outro casal de meninos transava também, na rua, ao lado de Papai Noel. Outros moleques estavam ao redor cheirando cola como se o sexo animado que acontecia ali fosse uma conversa comum. A essa altura, o mendigo bêbado da esquina não tinha mais nem um papelão para chamar de seu. Os vizinhos deixaram de levar alimentos para ele, com medo do antro que havia se formado.

Uma semana depois disso, já com duas acusações de arrombamento de lojas vizinhas em suas costas, o mendigo abandonou o seu “lar” durante o dia e só voltava à noite. Sempre com seus muitos moleques de rua, bêbados de cachaça, álcool e cola comprados com produto de furto.

Não chegou ao quarto mês. Papai Noel, que virou mendigo da esquina, depois o bêbado, o cheira-cola, o estuprador, o ladrão, amanheceu morto com uma facada que lhe cortou o pescoço de ponta a ponta, abrindo um irônico sorriso vermelho por entre sua barba multicolorida de sujeiras diversas. Não se sabe quem matou: se um comparsa, um segurança, um lojista, um vingador, sei lá. Sei que todos aqueles homens que ocuparam minha imaginação por quatro meses de repente ganharam uma vida efetiva no papel de morto.

Papai Noel era fugitivo da polícia. O morador de rua tinha uma família em Jaboatão dos Guararapes e saiu de casa na carreira para evitar ser preso. O bêbado desgraçado estuprara duas filhas, e a mais velha, com 14 anos, estava grávida dele. Na fuga, o ladrão só teve tempo de reunir oito livros, um cobertor, umas duas mudas de roupa e alguns trocados. Por fim o defunto acomodou-se no local e do jeito que foi possível: na esquina da minha inventiva imaginação.