O padre italiano Renato Chiera, de 75 anos, seguiu o caminho das pedras e encontrou o inferno. Com 50 anos de sacerdócio, completados neste domingo, o religioso faz uma radiografia das cracolândias no Rio, a pior coisa que viu em 31 anos atuando nas ruas. Fundador da Casa do Menor São Miguel Arcanjo, dedicada a menores infratores, ele foi um dos primeiros a entrar no submundo do crack para resgatar viciados e oferecer alternativas.
— A cracolândia parece um leprosário. Diria que é um cemitério de vivos que se consolam como podem, usando crack, esperando a morte — diz o religioso, que visita os pontos de consumo da droga uma vez por semana.
O padre possui uma espécie de salvo-conduto nos territórios de maior consumo, como as cracolândias de Manguinhos, Bandeira Dois, Maré e Jacarezinho. É respeitado. Muitos o abraçam e pedem a bênção. A boa recepção decorre de um dom: ouvir as dramáticas histórias dos usuários da droga sem recriminá-los. Ao padre é permitido filmar e fotografar lá dentro. Muitos falam sobre o que os levaram a cair no vício.
— Descrever a cracolândia é muito difícil. É preciso ver, sentir o cheiro, abraçar, olhar nos olhos. Eles (os viciados) me dizem: "Padre, estamos aqui porque aqui somos todos iguais. Ninguém quer a gente. Aqui um aceita o outro". A cracolândia é a foto de uma humanidade totalmente degradada, que prega o hedonismo, o poder. O resultado é este aí.
O relato de um viciado o levou a entrar pela primeira primeira vez numa cracolândia.
— Um rapaz que eu tinha acolhido me falou: "Padre, quero te mostrar uma coisa". Quando entrei na cracolândia de Manguinhos, fiquei espantado. Estava acostumado à rua, com crianças e adolescentes. Mas havia ali um povo de todas as idades. Todos debruçados sobre uma pedra. Aliás, sobre um copo, no qual eles quebram uma pedra, que faz crack, crack —conta.
O religioso critica o uso de repressão nas cracolândias:
— Não se pode agir com violência. Não funciona. Eles são pessoas já violentadas a vida inteira. Não têm medo de morrer.
Ele desenvolveu uma relação de confiança nas cracolândias.
— Não vamos lá para recolhê-los. Lixo é que se recolhe. Vamos lá para amar. E são muitos os que estão pedindo para sair conosco. Coloco uma roupa que me identifica como padre, uma vestimenta um pouco africana, e crio uma relação de simpatia, dizendo: "Olha, a gente vem aqui não para julgar, mas para escutar".
Nascido em Villanova Mondovi, comunidade na região do Piemonte, Itália, Renato estava com quase 40 anos e a vida estabilizada como professor de filosofia quando decidiu pelo trabalho missionário no Brasil. Foi enviado a uma região marcada pela violência: Miguel Couto, na periferia de Nova Iguaçu.
Atuava de forma tradicional, celebrando missas. Uma noite, ao chegar à casa paroquial, deu de cara com um jovem. Pensou que seria um assalto.
— Ele (o jovem) me falou: "Sou eu, o Pirata. A polícia está atrás de mim, me deu um tiro". O pescoço já estava sangrando. Uma bala o pegou de raspão.
O menor, acusado de cometer roubos na região, optou por uma nova vida. Começou a estudar e a trabalhar, com apoio do padre. Algum tempo depois, ao retornar para casa, o religioso soube que o menor havia sido assassinado.
— Pirata estava na mureta me esperando. Passou um carro, com quatro indivíduos. Quiseram levá-lo. Como era forte, tentou resistir. Deram tiro e o mataram. Eu vi o sangue no chão. Isso mexeu comigo — conta.
O crime fez o próprio padre se questionar sobre a relevância de seu trabalho. Perguntava-se se havia vindo ao Brasil para ser "padre-coveiro". Decidiu ajudar as pessoas a viver.
Outros jovens, ameaçados por grupos de extermínio, passaram a procurar o sacerdote. A sua casa já estava cheia, quando um grupo sugeriu batizar a instituição que estava nascendo.
— Eles me disseram: "Queremos que seja Casa do Menor, porque não temos casa" — relata.
Em 30 anos, a Casa do Menor São Miguel Arcanjo cresceu. Com sede em Miguel Couto, possui filiais em Tinguá, Guaratiba, Rosa dos Ventos, Vila Claudia, Shangri-lá, todas no Rio, além de unidades em Santana de Ipanema (Alagoas) e Pacatuba (Ceará). Já foram oferecidos cursos profissionalizantes a 60 mil jovens e acolhidos 10 mil nas casas. Muitos ex-moradores de rua são hoje educadores no projeto.
O padre não se arrepende de ter deixado a vida confortável na Itália pela missão:
— Agradeço muito. Deus me pegou pelos cabelos, por isso não os tenho mais, e me trouxe ao Brasil. Me trouxe às periferias. Gosto quando me chamam de padre de rua, padre da cracolândia, padre das periferias.
Os momentos mais emocionantes em sua vida ocorreram nas áreas mais carentes. Um exemplo que gosta de contar ocorreu na única noite em que decidiu passar na cracolândia de Manguinhos. Os viciados se preocuparam em deixá-lo confortável.
— De manhã, quando me preparava para sair, um deles me chamou: "Aqui está o seu café". Ele me trouxe uma Coca-Cola com dois sanduíches. Custou R$ 15, o bastante para comprar três pedras de crack. Nunca me senti tão amado. Nem pelas igrejas, nem pela minha comunidade católica. Quando você ama uma pessoa, ela te devolve o amor.
Jornal O Globo (Rio)