Senado aprovou nesta quarta-feira (26), por 54 votos a 19, o projeto de lei que endurece as punições para autoridades que cometem abuso. O texto teve como relator o senador Roberto Requião (PMDB-PR). Veja a íntegra do projeto aprovado ao final desta reportagem.
Antes de ser aprovado pelo plenário do Senado, o texto já havia sido aprovado, também nesta quarta, pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Com a aprovação, o projeto segue agora para análise da Câmara dos Deputados.
Se os deputados alterarem algum ponto do projeto, a proposta volta para nova análise do Senado. Mas, se a Câmara mantiver o texto, a medida seguirá para a sanção presidencial.
A proposta aprovada pelo Senado revoga a lei em vigor sobre abuso de autoridade, de 1965, e cria uma nova legislação, com punição mais rigorosa e com a inclusão de mais situações em que uma autoridade pode ser enquadrada na prática de abuso.
A votação do projeto de abuso de autoridade só foi possível após um recuo de Requião que alterou, durante a reunião da CCJ na manhã desta quarta, o trecho mais criticado da proposta (leia mais sobre o recuo abaixo).
Como ficou o projeto de lei
O projeto prevê punições previstas no projeto servidores públicos e militares, membros do Poder Legislativo, Judiciário, do Ministério Público e dos tribunais ou conselhos de conta.
O projeto prevê também, como forma de punição, a inabilitação para o exercício de cargo por período de até cinco anos, variando com relação à condenação. Além disso, propõe a perda do cargo, do mandato ou da função pública em caso de reincidência.
Diz o texto aprovado:
"Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe tenha sido atribuído.
§ 1º As condutas descritas nesta lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem, beneficiar a si próprio ou a terceiro ou ainda por mero capricho ou satisfação pessoal.
§ 2º A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura, por si só, abuso de autoridade."
Entre outros pontos, o projeto prevê punição para as seguintes práticas:
Divulgar gravação sem relação com a prova que se pretendia produzir, “expondo a intimidade ou a vida privada, ou ferindo a honra e a intimidade” do acusado ou do investigado no processo. Punição: de 1 a 4 anos de detenção e pagamento de multa;
Realizar interceptações ou escutas sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei. Pena: reclusão de 2 a 4 anos e multa;
Punição para a autoridade que estende a investigação sem justificativa e em “prejuízo do investigado”. Detenção de 6 meses a 2 anos de multa;
Pena de 1 a 4 anos de detenção, além do pagamento de multa, para delegados estaduais e federais, promotores, juízes, desembargadores e ministros de tribunais superiores que ordenarem ou executarem "captura, prisão ou busca e apreensão de pessoa que não esteja em situação de flagrante delito ou sem ordem escrita de autoridade judiciária";
A proposta estabelece ainda pena de detenção de 1 a 4 anos para a autoridade policial que constranger o preso, com violência ou ameaças, para que ele produza provas contra si mesmo ou contra terceiros;
Fotografar ou filmar, permitir que fotografem ou filmem, divulgar ou publicar filme ou filmagem de preso, internado, investigado, indiciado ou vítima sem consentimento, com o objetivo de expor a pessoa a vexame ou à execração pública (pena de detenção de seis meses a 2 anos, além de multa).
Não há crime se o intuito da filmagem ou fotografia for o de reproduzir provas em investigação criminal.
Invadir, entrar ou permanecer em casas de suspeitos sem a devida autorização judicial e fora das condições estabelecidas em lei (pena de detenção de 1 a 4 anos);
Não fornecer cópias das investigações à defesa do investigado (pena de detenção 6 meses a 2 anos).
Decretar a condução coercitiva de uma testemunha ou pessoa investigada, sem prévia intimação judicial, sob pena de 1 a 4 anos de detenção, além de multa.
Deixar de comunicar prisão em flagrante, dentro do prazo legal, ou de comunicar imediatamente prisão temporária, sob pena de 6 meses a 2 anos e multa. Também é obrigatória a comunicação imediata da prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontra à sua família.
A proposta também prevê detenção de 1 a 4 anos para autoridade policial que constranger a depor, sob ameaça de prisão, qualquer pessoa que em função de sua profissão deva guardar segredo sobre informações.
Submeter o preso ou interno ao uso de algemas quando não houver resistência à prisão, ameaça de fuga ou risco à integridade física do próprio preso, da autoridade ou de qualquer outra pessoa. Pena de 6 meses a 2 anos e multa e será aplicada em dobro se o interno tiver menos de 18 anos, em caso de gravidez ou ocorrer em penitenciária.
O projeto também prevê detenção de 1 a 4 anos e multa à autoridade policial que mantiver presos de ambos os sexos na mesma cela. A pena também vale à autoridade que mantiver criança ou adolescente na mesma cela na companhia de maior de idade ou em ambiente inadequado.
Cumprir mandado de busca e apreensão domiciliar após as 21 horas ou antes das 5 horas prevê pena de até 4 anos e multa. Não há crime se houver necessidade para prestação de socorro ou em casos de flagrante ou desastre.
Recuo
Após muita pressão de senadores, da opinião pública, e de entidades ligadas a magistrados e juízes, Requião alterou a redação de um dos dispositivos da proposta: o que tratava sobre a divergência na interpretação de leis e avaliação de fatos provas.
"A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas, necessariamente razoável e fundamentada, não configura, por si só, abuso de autoridade”, dizia inicialmente a proposta de Requião.
Críticos, entre eles o juiz Sérgio Moro, diziam que esse dispositivo poderia retirar a “autonomia e a independência” de juízes e procuradores, colocando em risco operações como a investigação Lava Jato.
Para o presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Roberto Veloso, por exemplo, se esse trecho entrasse em vigor, o juiz ficaria com “medo de proferir decisões”. O problema, segundo Veloso, residia na expressão “necessariamente razoável”.
Vários senadores argumentaram que o texto poderia “criminalizar” a interpretação de fatos e leis – e criticaram a proposta.
Com isso, Requião decidiu aceitar uma sugestão de alteração feita pelo senador Antonio Anastasia (PSDB-MG) e retirou a expressão “necessariamente razoável” do texto.
Há várias semanas o dispositivo era criticado, mas Requião insistia em mantê-lo no texto argumentando que retirá-lo daria liberdades totais a magistrados e juízes. Mas, diante de uma possível derrubada do projeto durante votação no plenário, resolveu ceder.
Outras mudanças
Requião também modificou, em seu texto, outro ponto que era bastante criticado por procuradores. Trata-se do artigo que fala sobre o início de um processo investigatório.
O trecho previa detenção para a autoridade que desse início à persecução penal, civil, ou administrativa “com abuso”.
No novo relatório, Requião trocou a expressão “com abuso” por “sem justa causa fundamentada”. A punição prevista nesse caso é de detenção de um a quatro anos. Mesmo com a mudança, o ponto continua a ser questionado por investigadores.
O relator também mudou outro trecho que era criticado por representantes do Ministério Público. O dispositivo permitiria a investigados processar privadamente as autoridades que os investigam.
Requião acolheu emenda do senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE) que diz que “será admitida ação privada se a ação penal pública não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva”.
A alteração proposta por Valadares e aceita por Requião contempla as reivindicações do Ministério Público com relação a processos contra autoridades por parte de investigados.
Debate
Mesmo com as modificações promovidas por Requião, um grupo de parlamentares declarou voto contrário ao texto, porque acredita que alguns pontos do projeto ainda geram “insegurança” para investigações.
“Ainda persistem no projeto algumas dúvidas que, na minha concepção, podem inibir investigações [....]. O artigo que diz que constranger o preso ou detento mediante violência, grave ameaça, para produzir provas contra si mesmo ou contra terceiro. Isso pode enfraquecer o atual mecanismo das delações premiadas”, argumentou o senador Reguffe (sem partido-DF).
O parlamentar também criticou o que chamou de “subjetividade” em outros pontos do projeto.
Na mesma linha, Cristovam Buarque (PPS-DF) afirmou que aprovação da proposta é um “equívoco”.
“Apesar das emendas que avançaram, que "despioraram", para não dizer que melhoraram. Apesar dessas emendas, eu considero um erro gravíssimo do parlamento aprovar este projeto”, declarou Cristovam.
“Submeter o preso ao uso de algemas se não houver resistência. Como vai ser apurada a resistência? [...].O artigo 37: "Demorar demasiada e injustificadamente no exame de processo..." Como se vai avaliar isso?”, emendou o senador do DF.
“Nós vamos inviabilizar com isso o trabalho de nossos juízes, de nossos procuradores, da polícia na luta contra o tráfico, contra estupro e contra a corrupção também. E, sobretudo, está claro que isso tem a ver com a Lava Jato!”, completou Cristovam.
O senador Jorge Viana (PT-AC) pediu a palavra para defender o projeto, comemorando o entendimento promovido pela CCJ em relação aos trechos mais polêmicos.
Ele afirmou que a legislação em vigor sobre abuso foi editada na época da ditadura militar e foi feita “para permitir abusos”.
Cristovam retrucou e afirmou que a lei aprovada nesta quarta é para “proteger autoridades das algemas”.
Histórico
A versão inicial do projeto, apresentada pelo líder do PMDB, Renan Calheiros (PMDB-AL), investigado pela Lava Jato, foi duramente criticada por parlamentares e entidades ligadas a juízes e procuradores.
Esses grupos afirmavam que o texto inicial poderia retirar a autonomia e a independência de magistrados e procuradores; e diziam que a proposta era uma retaliação do Congresso a investigações como as da operação Lava Jato, que envolvem vários políticos.
Renan, quando era presidente do Senado, tentou colocar o texto em votação no ano passado, em meio ao avanço da operação Lava Jato sobre congressistas.
Diante de pressão de colegas, o peemedebista retirou o projeto da pauta e o encaminhou para a CCJ, sob a relatoria de Requião. O parlamentar do Paraná apresentou mais de um relatório sobre o tema, modificando algumas partes.
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, chegou a encaminhar ao Senado uma versão alternativa que, na visão dele, não prejudicaria a atuação de juízes e de procuradores.
O texto de Janot foi protocolado em forma de projeto pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e passou a tramitar em conjunto com a proposta de Renan.
Requião chegou a acolher algumas sugestões de Janot, mas manteve, no relatório original, as partes mais criticadas pelos representantes da magistratura e do Ministério Público.
Nesta quarta, porém, Requião cedeu às reivindicações e alterou o texto, o que viabilizou a sua aprovação.
Portal G1