Os últimos acontecimentos de violência contra a mulher envolvendo nomes como o do ator José Mayer, o do cantor e compositor Victor Chaves e do médico Marcos Härter, ex-integrante do reality show Big Brother Brasil, estão longe de serem casos isolados.
Estima-se que, no Brasil, cinco mulheres são espancadas a cada dois minutos, segundo dados da pesquisa Mulheres Brasileiras nos Espaços Público e Privado (FPA/Sesc, 2010). Em 2014, foram registrados 47.643 casos de estupro em todo o país, segundo o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2015), o que significa que uma mulher é estuprada a cada 11 minutos.
Se por um lado é evidente a necessidade de visibilizar essas e outras violências contra a mulher – como feminicídio, violência contra lésbicas, bis e trans, ou casos de racismo – e de garantir um espaço de debate público, por outro também fica claro que a agenda é alvo de disputa na sociedade e frequentemente impactada por retrocessos.
Uma questão de intencionalidade política
O expoente mais recente dessa lógica se apresentou no último dia 6 de abril, data em que o Ministério da Educação (MEC) entregou a terceira e última versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) ao Conselho Nacional de Educação (CNE) para ser votada.
O documento chegou aos conselheiros com uma diferença da versão que foi entregue previamente a jornalistas sob embargo. No texto, foram suprimidos os termos “gênero” e “orientação sexual” de artigos que tratam das competências e habilidades requeridas dos estudantes.
A referência à igualdade de gênero também foi retirada de algumas políticas educacionais estaduais e municipais. Estados como Acre, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Pernambuco, Piauí, Paraná, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe, Tocantins sancionaram seu planos sem a menção, segundo levantamento da iniciativa De Olho nos Planos. O Plano Municipal de São Paulo também foi aprovado sem a palavra gênero após pressão de grupos religiosos.
Para a coordenadora da área de educação da Ação Educativa, Denise Carreira, a sociedade perde quando as políticas educacionais não asseguram este espaço. “Discutir gênero é abordar um conjunto de problemas estruturais do país, como a violência contra a mulher, a cultura do estupro, a desigualdade salarial entre homens e mulheres, os assassinatos de travestis e transgêneros (o Brasil é o país que mais mata essa população no mundo), o modelo predominante de estética que desqualifica, por exemplo, as mulheres negras”, observa, ao reconhecer o desafio de enfrentar a cultura machista, racista e homofóbica enraizada.
Em sua análise, a disputa em torno desta agenda é encabeçada por grupos como o Movimento Brasil Livre (MBL) e outros que não aceitam as transformações vividas nas últimas décadas na perspectiva de uma maior igualdade entre homens e mulheres; e que não reconhecem as populações LGBTT e negra e os diversos arranjos familiares existentes.
Daí também surgem os discursos que acusam as escolas de operarem doutrinação com seus estudantes ao abordarem as desigualdades sociais. Para Denise, a lógica é totalmente inversa. “Para construir um caminho em prol da justiça social precisamos de uma escola que promova a cultura democrática, que ensine a reconhecer o outro com igual dignidade”, defende.
Gênero, educação e escola
A tentativa de barrar a entrada do gênero nas escolas é infundada na opinião da gerente técnica da Plan International Brasil, Viviana Santiago. “Isso porque elas já operam uma socialização de gênero. Isso acontece todas as vezes que se conta a história construída apenas por heróis homens, quando se utiliza livros infantis em que se apresentam as princesas que são salvas por príncipes, ou quando se conforma o corpo dos meninos para o esporte e o das meninas para outras atividades. Isso é ensino de gênero da maneira mais tradicional e só reitera estereótipos”, coloca, criticando a postura heteronormativa das instituições de ensino.
Em sua análise, a escola, enquanto integrante de uma rede de proteção, tem o papel de promover uma educação para a igualdade de gênero, o que implica em ofertar outros repertórios a meninos e meninas: “que os ensine a desenvolver plenamente seus potenciais, sem estarem presos a ‘coisas de menino ou coisas de menina'”, atesta.
As especialistas concordam que a decisão do MEC de recuar diante à pauta de gênero e ceder a pressões de grupos contrários pode “fragilizar” as escolas, mas reforçam a necessidade das unidades se apoiarem nos marcos legais que garantem a promoção de uma educação comprometida com a igualdade de gênero, raça e sexualidade, como a Constituição Federal, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), o Plano Nacional de Educação (PNE), a própria Lei Maria da Penha e outros dispositivos legais e acordos dos quais o Brasil é signatário.
Educar para informar
Educar para a igualdade de gênero é fundamental para romper com a naturalização da violência, segundo a diretora de conteúdo do Instituto Patricia Galvão, Marisa Sanematsu.
A especialista entende que visibilizar os casos de violência contra as mulheres é importante. Em relação à veiculação dos últimos casos que foram protagonizados por figuras públicas, Marisa reconhece a capacidade das pessoas de se solidarizarem com as vítimas.
No entanto, entende que ainda é preciso caminhar para que a imprensa também cumpra um papel educativo em relação aos direitos das mulheres brasileiras. “No geral, ainda temos coberturas muito negativas e sensacionalistas que buscam criminalizar ou culpabilizar a mulher que sofre alguma violência”, observa.
E completa: “por isso, temos que ter como questão central o combate a essa cultura da violência enraizada em nossa práticas, atitudes, percepções e preconceitos. E isso só pode ser construído com investimento na educação”, finaliza.