Em Araraquara (SP), todos os dias, antes da abertura de cada sessão na Câmara dos Vereadores, cinco versículos da Bíblia são selecionados e lidos pelos parlamentares, como determina o regimento interno da Casa.
No início de janeiro deste ano, porém, uma vereadora questionou a tradição. Eleita pela primeira vez, Thainara Faria (foto) pediu a palavra e, para espanto dos colegas, disse discordar da prática, uma vez que ela feria a laicidade do Estado e não contemplava as demais religiões.
“Quis me posicionar na Câmara porque sou católica, mas estou aqui para servir ao povo e à Constituição. E lá está previsto que o nosso Estado é laico”, justifica a vereadora do PT.
Primeira mulher negra e a mais jovem da história a ser eleita para o cargo, Faria, 22 anos, conta que não esperava tanta repercussão. “Isso deveria ser um posicionamento natural para um legislador, mas muitos são omissos.Não fiz para causar, mas entre as minhas bandeiras está a tolerância religiosa. Infelizmente, no Brasil algumas religiões ainda sofrem muita perseguição”.
Oriunda da periferia e estudante de Direito, Faria relata que a cidade de 200 mil habitantes não escapa da intolerância, inclusive com episódios de perseguição às religiões de matriz africana. Em setembro de 2015, um terreiro de umbanda foi atacado na cidade. O caso é investigado como suposto crime de ódio.
Localizada a 270 quilômetros da capital São Paulo, metade da cidade professa a religião católica. A seguir, as religiões mais populares são a evangélica e a espírita. Os ateus ou sem religião declarada são cerca de 12 mil. Os que se declaram adeptos do candomblé ou umbanda também são relativamente poucos, mas existem: são cerca de 700 pessoas declaradas, segundo o Censo do IBGE.
Assim, a vereadora sugeriu aos outros 17 colegas na Câmara a ampliação do leque espiritual, contemplando a leitura de outros livros sagrados, como Evangelho Kardecista, lido pelos espíritas, o Alcorão dos muçulmanos ou mesmo textos sobre o ateísmo.
“A Casa do Povo não pode ter religião, é absurdo. É como dizer que o Brasil é só de católicos ou de evangélicos. Ao ler apenas trechos da Bíblia, estamos excluindo parcelas da população que não seguem o Evangelho”.
O discurso gerou muitas caras feias. “Não tive nenhuma reação positiva. Temos uma Câmara de pastores e outros religiosos, então foi difícil a reação dos colegas. Mas não é por ser uma tradição que é correto, precisamos defender a laicidade do Estado”, justifica.
Em média, a cada três dias chega uma denúncia de intolerância religiosa à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, segundo dados reunidos entre 2011 e 2014. Fiéis de religiões de matriz africana, o como o candomblé e a umbanda, são um terço dos atingidos por esse tipo de violência.
Em 2015, no Rio de Janeiro, uma menina de 11 anos levou uma pedrada quando saía de um culto de candomblé. Em São Paulo, um terreiro também foi alvo de pedradas e xingamentos.
Carta Capital