O desafio de Brown foi lançado depois de Signorile publicar um post no The Huffington Post no qual afirmava: “Não podemos ser reféns do teatro dos extremistas religiosos”. Brown respondeu, escrevendo: “Quem são os extremistas, na realidade? Aqueles que estão convencidos de que um casamento, para ser um casamento, tem de incluir um homem e uma mulher, como tem sido o caso em toda a história registrada, em todas as culturas e países, e em harmonia com as crenças religiosas de bilhões de pessoas, ou aqueles que querem redefini-lo radicalmente?”
O problema da resposta de Brown é que o casamento nem sempre envolveu homens e mulheres e certamente não exige crenças religiosas para ser considerado válido. É simplesmente errado afirmar que o casamento é uma instituição estática que não continua evoluindo de modo extremo ao longo do tempo, ou que o tipo de casamento defendido por pessoas como Brown é o único que jamais existiu na história.
De “casamentos fantasmas” a cerimônias realizadas somente para chegar ao poder, eis aqui apenas algumas maneiras pelas quais o casamento foi redefinido ao longo da história.
Grécia Antiga: casamento é para fazer bebês.
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Como muitos governos da antiguidade, Atenas não definia legalmente o casamento de seus cidadãos. Produzir filhos era basicamente a única razão para se juntar – como disse um homem: “Mantemos hetarae (cortesãs) para o prazer, concubinas para o cuidado diário com nossos corpos e esposas para ter filhos legítimos e para a vigilância da nossa casa” – porque o estado controlava a transferência de riquezas por meio da herança.
Era tão importante manter as propriedades na família, escreve Stephanie Coontz, autora de Marriage: A History (casamento: uma história, em tradução livre), que uma menina cujo pai morresse sem deixar um herdeiro homem poderia ser forçada a se casar com o parente mais próximo do sexo masculino, mesmo que para isso fosse obrigada a se divorciar do marido atual.
O casamento nem sequer era considerado a mais ideal das uniões, pelo menos segundo os membros da elite da sociedade. Essa honra cabia às – que rufem os tambores, por favor – parcerias homossexuais, já que não se esperava que homens e mulheres oferecessem realização emocional um para o outro.
Povos indígenas ao redor do mundo: a vida é difícil, então case com quem oferecer mais ajuda.
Em algumas culturas, os homens tinham várias esposas, para que elas pudessem ajudar com todo o trabalho necessário para sustentar a família. As mulheres de Botsuana tinham um ditado: “Sem outras esposas, o trabalho da mulher não acaba nunca”, escreve Coontz. No ambiente árido da Austrália, os aborígenes arranjavam os casamentos das crianças com base no acesso estratégico a terras, para que o clã tivesse comida e água em seus deslocamentos.
Algumas tribos nativas da América do Norte respeitavam os indivíduos de “dois espíritos”, ou que pudessem fazer o trabalho de homens e mulheres. As pessoas de dois espíritos podiam se casar com pessoas do mesmo sexo, pois todas as tarefas domésticas seria realizadas facilmente, tornando o casamento uma questão mais de trabalho que de gênero.
China antiga: por que restringir o casamento aos vivos?
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Filósofos confucianos argumentavam que os laços familiares mais fortes eram os de pais e filhos, ou entre irmãos, escreve Coontz. Laços maritais ocupavam um distante segundo lugar em relação aos familiares, tanto que um filho poderia ser espancado se tomasse o lado de sua esposa (que era forçada a morar com a família do marido) e não o do pai.
Uma das tradições matrimoniais mais estranhas de todos os tempos sem dúvida é a dos “casamentos fantasmas” . Para evitar que parentes que morreram solteiros ficassem sozinhos na vida além-túmulo, suas famílias os casavam com outros mortos.
Os dois eram unidos numa cerimônia realizada no cemitério, e os sogros mantinham contato depois do casamento. Apesar de proibidos hoje em dia, os casamento fantasmas ainda acontecem no país.
Egito antigo: casamento para ter sangue azul.
Os governantes do império dividido de Alexandre o Grande usavam o casamento como arma política, escreve Coontz. Eles tinham mais de uma esposa, com o objetivo de estabelecer alianças com outros reis. Mas, diferentemente das co-esposas de Botsuana, as co-esposas helênicas tipicamente se odiavam, pois enxergavam ameaças umas nas outras. As crianças conspiravam com suas mães contra as madrastas. Irmãos conspiravam contra irmãos. Para produzir herdeiros que pudessem acabar com qualquer dúvida a respeito da legitimidade, também ocorriam casamentos de irmãos com irmãs.
Nas classes mais baixas, nas quais não havia muita riqueza em jogo, havia mais liberdade na escolha do parceiro. Mas os casamentos ainda eram vistos como contratos comerciais, pois uma vida de solteiro independente era praticamente impossível sem a mão de obra necessária para trabalhar no campo e cuidar da casa. Os escravos, que não tinham casas próprias, eram proibidos de casar.
Roma antiga: vamos usar nossas mulheres como moeda de troca política.
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O objetivo final de um casamento romano, como em tantas outras culturas, era produzir filhos legítimos. Os homens eram vistos mais como administradores das famílias do que como integrantes delas, escreve Coontz. Para além da necessidade de permissão oficial para se casar com estrangeiros, entretanto, o Estado não estava preocupado com quem se casava com quem.
Governantes entregavam suas próprias mulheres para outros a fim de formar alianças políticas – foi o que fez Marcus Porcius Cato ao se divorciar de sua mulher, Marcia, e arranjar o casamento dela com seu amigo Hortensius. Nem imaginamos como Marcia se sentiu.
Os primeiros cristãos: o sexo marital é um mal necessário.
“Muitos dos primeiros cristãos”, escreve Coontz, “acreditavam que o casamento minava o rigoroso autocontrole necessário para se alcançar a salvação espiritual”. O celibato, portanto, era preferível ao casamento, mas o sexo era tolerado se tivesse como propósito a procriação – desde que você não se casasse com seu primo, primo de segundo grau, madrasta, afilhada, viúva do seu irmão ou tio, ou qualquer mulher a menos de sete graus de separação. (Boa sorte para entender essa regra.)
Europa Medieval: a vida ainda é difícil, e o casamento faz sentido para os negócios.
Para os ricos, o casamento era mais uma vez um acordo político entre duas famílias que desejavam consolidar seus laços e unir seus patrimônios. Rainhas arranjavam casamentos para irmãos, parentes e damas de companhia a fim de criar redes de apoio internacionais. Nos séculos 12 e 13, as pessoas acreditavam que “o amor não consegue exercer suas forças entre duas pessoas casadas”, como escreveu certa vez a condessa de Champagne. Relações adúlteras, por outro lado, eram o ápice do romance.
Para a Igreja Católica, o casamento simplesmente consistia entre um homem, uma mulher, consentimento mútuo, consumação e – muito importante – aprovação dos pais. Os pais tinham tanto controle sobre as negociações de casamento que, em 1413, dois pais de Derbyshire, na Inglaterra, assinaram um contrato no qual o nome da noiva foi deixado em branco, porque o pai não tinha decidido qual das filhas seria a noiva.
Os plebeus usavam o casamento para obter terras, que eram distribuídas aleatoriamente. Era ideal ter vários terrenos contíguos, e a esperança era que sua filha se casasse com o filho do vizinho. Comerciantes e artesãos costumavam casar seus filhos com famílias da mesma área de negócios, para compartilhar recursos.
Século 16: o casamento agora é um sacramento.
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Em 1536, a Igreja Católica decretou que o casamento era um ritual sagrado, a ser realizado numa igreja. O assunto já havia sido discutido séculos antes, diz Coontz, mas teria invalidade muitos casamentos, pois na época ninguém se casava na igreja.
Enquanto isso, os protestantes declararam o direito do clero de celebrar casamentos, mas ao mesmo tempo advertiam os noivos a não se amar demais. Muita gente ainda se espantava com o conceito de amor no casamento – um colono da Virgínia escreveu que uma amiga “gostava mais do marido do que a Educação da época permite”. (Mas, sendo justo, demonstrações públicas de afeto são um saco.) Em toda a Europa pré-Industrial, entretanto, o casamento era mais bem descrito como “um repertório de sistemas adaptáveis, não um padrão”, escreve o historiador E.A. Wrigley.
Iluminismo: o amor no casamento também é meio importante.
Pensadores dos salões começaram a ruminar sobre o casamento e decidiram que parceiros apáticos eram uma coisa triste. Dois pombinhos apaixonados deveriam ter a liberdade de escolher com quem se casariam, em vez de deixar a decisão na mão dos pais, elevando a importância do companheirismo e da cooperação. O casamento começou a se tornar a parceria privada que reconhecemos hoje.
Os críticos, é claro, disseram que essa igualdade entre os parceiros era a destruição do casamento como a sociedade o conhecia, pois minava a autoridade do homem que mantinha a solidez do lar. Tolas mulheres!
Era Vitoriana: boas esposas pertencem ao “culto da pureza”.
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Quando a rainha Vitória entrou na igreja com um vestido virginalmente branco, ajudou a mudar a percepção das mulheres: em vez de “libidinosas”, elas passaram a ser vistas como inocentes, assexuais. O casamento ideal ocorria entre um homem e uma mulher de morais imaculadas. Quando o sexo passou a ser considerado indecente demais para boas moças – que eram incentivadas a reprimir seus impulsos sexuais --, os homens passaram a sentir menos estresse por causa de suas relações com prostitutas.
Começo do século 20: casais devem ter boas transas.
Os jovens se rebelaram contra seus pais certinhos da era vitoriana exaltando a juventude e o físico – além de se casar por amor, casais ideais também tinham vidas sexuais gratificantes. No final dos anos 1920, escreve Coontz, a intimidade de um casal tinha se tornado mais importante que os laços com os país. Enquanto isso,críticos escreviam colunas em jornais com títulos como “O casamento está falido?” e previam que o foco crescente no sexo levaria ao fim da instituição em menos de 50 anos.
1950: as famílias nucleares são as melhores famílias.
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A era pré-Segunda Guerra Mundial viu uma “febre de casamentos” que resultou numa obsessão com a família nuclear depois do conflito. Os casamentos tipicamente consistiam do homem, que ganhava o pão, da mãe, dona-de-casa, e alguns filhos – e as uniões tinham uma duração como jamais se vira na história. Ainda havia leis, entretanto, proibindo brancos de se casar com negros, mongóis, hindus, indianos, japoneses, chineses ou filipinos. As leis que impediam o casamento de pessoas com problemas mentais continuavam em vigor – e algumas estão em vigor até hoje –, mas em geral deixaram de ser aplicadas a partir da metade do século 20.
Fim do século 20: o casamento é um direito humano.
Grupos feministas lutaram para aliviar a pressão que as mulheres sofriam para arrumar um marido, ajudando a consolidar a ideia de que o casamento é uma parceria entre iguais. O estupro marital passou a ser considerado crime. Estados começaram a repelir leis que impediam certos casamentos – a proibição de casamentos interraciais foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte em 1967, e o casamento entre presidiários foi legalizado em 1987 --, e a ideia de um casamento perfeito se torna cada vez mais uma questão comercial – e bilionária.
Em 2001, a Holanda se tornou o primeiro país do mundo a permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
E a história continua...
Brasil Post