Há 76 anos o terrível encontro
entre militares do Governo Getulista e cangaceiros liderados por Lampião e sua
esposa, Maria Bonita, estes pegos de surpresa e quase sem nenhuma reação na
madrugada do dia 28 de julho de 1938, na grota de Angico, em Sergipe,
praticamente pôs fim a chamada Era do Cangaço. Em meio às árvores retorcidas da
caatinga e resultando num verdadeiro banho de sangue no sertão nordestino, 11
integrantes do afamado bando, incluindo o casal líder, foram mortos e tiveram
suas cabeças decepadas. Esta tragédia verdadeira é o tema da 3ª edição do
grandioso espetáculo ao ar livre e gratuito de Serra Talhada “O Massacre de
Angico – A Morte de Lampião”, concebido a partir do texto dramático escrito
pelo pesquisador do Cangaço, Anildomá Willans de Souza, natural de Serra
Talhada, mesma cidade onde Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, nasceu. Mas
o “molho” que rege toda esta história é o perfil apresentado deste homem,
símbolo do Cangaço visto por outro viés, bem mais humano.
Numa realização da Fundação
Cultural Cabras de Lampião, com patrocínio da Lei Rouanet, Empetur/Governo
do Estado de Pernambuco e Prefeitura Municipal de Serra Talhada, além de
diversas empresas locais, a montagem, que teve sua estreia em julho de 2012,
com absoluto sucesso, volta a ser apresentada na cidade de Serra Talhada, de 23 a 27 de julho, sempre às 20h,
na Estação do Forró (antiga Estação Ferroviária). Com entrada franca, a
expectativa da organização do espetáculo é reunir mais de cinquenta mil pessoas
nos cinco dias da temporada. A direção é do mestre de grandiosas produções
teatrais ao ar livre no Estado, o diretor, ator, dramaturgo e iluminador José
Pimentel, e conta na equipe com 40 atores, 40 figurantes e 40 profissionais,
divididos entre equipe técnica e administrativa.
Com larga experiência adquirida
em montagens como Paixão de
Cristo da Nova Jerusalém, Paixão
de Cristo do Recife, O
Calvário de Frei Caneca, Jesus
e o Natal e Batalha dos Guararapes – Assim
Nasceu a Pátria e Revolução de 1817,
José Pimentel foi convidado pela organização do espetáculo, o casal Anildomá
Willans e Cleonice Maria (que conheceu quando foi convidado a ser jurado em um
festival de teatro serratalhadense anos atrás), e aceitou o convite por ter
estreita ligação com o tema do Cangaço. “Lampião me faz recordar meu pai,
Virgínio Albino Pimentel, que costumava me contar a história de que o encontrou
duas vezes, antes mesmo de eu nascer. Meu pai comprava porcos nos sítios para
vender nos matadouros e, numa dessas viagens, deparou-se com o bando de
Lampião. Mas eles fizeram amizade e até um banquete foi promovido. Tinha uma
foto lá em casa com meu pai vestido de cangaceiro e usando os dois punhais que
ele ganhou de presente! Por isso, desde pequeno, eu ouvia falar bem de Lampião,
que para mim sempre foi um herói. Até por não ter matado meu pai”, brinca. É
este Lampião mais humano, mais gente, segundo Pimentel, quem permeia o
espetáculo. “Certamente é um Lampião menos ruim do que o povo imagina. É o
Lampião de Domá”, finaliza, referindo-se ao apelido do autor do texto.
Pesquisador
afamado do Cangaço, Anildomá Willans de Souza possui quatro obras já publicadas
nesta temática, Lampião, o
Comandante das Caatingas, Xaxado:
Dança de Guerra dos Cangaceiros de Lampião, Nas Pegadas de Lampião e Lampião: Nem Herói Nem Bandido –
A História. Foi a partir de suas conclusões ao reconstruir esta tão
controversa trajetória, que decidiu enveredar-se na dramaturgia, mas tentando
assumidamente humanizar a figura de seu personagem principal. “O cangaceiro
violento, bandido, que não abre um sorriso, já está retratado por aí... Eu quis
mostrar o outro lado deste homem, que chora, se apaixona, sente medo da morte
pressentida, faz declarações de amor. Um Lampião diferente, mais gente, e que
não é somente meu: um Lampião com alma. Que fala de morte, sim, mas também de
amor. Que desafia o inimigo com um punhal, mas, ao clarão da lua sertaneja,
declara-se poeticamente à mulher amada. Essa é a dualidade que me interessa”,
defende Anildomá.
O Espetáculo
“O Massacre de Angico – A Morte
de Lampião” reconta a vida do Rei do Cangaço, desde o desentendimento inicial
de sua família com o vizinho fazendeiro, Zé Saturnino, ainda em Serra Talhada.
Para evitar uma tragédia iminente, e que de fato aconteceu, seu pai, Zé
Ferreira, fugiu com os filhos para Alagoas, mas acabou sendo assassinado por
vingança. Revoltados e para fazer justiça com as próprias mãos, Virgulino
Ferreira da Silva e seus irmãos entregaram-se ao Cangaço, movimento que deixou
muito político, coronel e fazendeiro apavorado nas décadas de 1920 e 1930 no
Nordeste. Temidos por uns e idolatrados por outros, os cangaceiros serviram
como denunciantes das péssimas condições sociais daquela época, tanto que a
honra e bravura de Lampião foram decantadas pelos poetas populares, ao mesmo
tempo em que o Governo o via como uma doença que precisava ser eliminada.
Foi com a decisão do então
presidente da República, Getúlio Vargas, que as tropas militares conseguiram
preparar, após diversas tentativas, uma emboscada para Lampião e sua tropa em
local propício, de única entrada e saída, em Angico. Mas até sua morte, outros
fatos importantes da trajetória deste homem que marcou a história do Brasil,
afamado como herói e bandido, são revelados, como: seu encontro com Padre Cícero para
receber a patente de capitão do Exército Patriótico; as demonstrações de
liderança e guerrilha nas visitas aos sete estados do Nordeste; seu amor à
esposa, Maria Bonita, com frases poéticas ditas à luz do luar; a festa da
cabroeira dançando xaxado e coco; e até a traição de Pedro de Cândida, coiteiro
que foi torturado pelos militares e acabou entregando o local de repouso dos cangaceiros
em terras sergipanas.
No elenco, atores da própria
Serra Talhada, mas também do Recife e Olinda, além da atriz/cantora Roberta
Aureliano, que interpreta Maria Bonita e é natural de Maceió, Alagoas, mas que
passou toda a infância em Serra Talhada. O ator e dançarino Karl Marx, de
apenas 23 anos, vive o protagonista. Integrante do Grupo de Xaxado Cabras de
Lampião, ele comemora 10 anos à frente do mesmo papel, em outras montagens. “A
responsabilidade é grande porque se trata de um personagem que mexe com a
imaginação das pessoas, que influenciou a cultura popular sertaneja, os valores
morais e até o modo de viver do nosso povo. Pra mim, que sou da terra de
Lampião, que nasci e me criei ouvindo contos sobre esses homens que escreveram
nossa história com chumbo, suor e sangue, me sinto feliz e orgulhoso pela
oportunidade de revelar seu lado humano, suas emoções, seus medos e todos os
elementos que o transformaram nessa figura mítica. Este trabalho é mais do que
um desafio profissional. É quase uma missão de vida, ainda mais quando se trata
de Cangaço, tema polêmico que gera divergências, contradições e até
preconceitos”, revela ele.
Também como atores, José Pimentel (Zé Ferreira, pai de
Lampião e soldado com voz em off), Juliana Guerra (Sinhá), Sebastião Costa
(Tenente Zé Lucena, soldado da tortura e da decapitação), Gildo Alves (Zé
Saturnino), Jadenilson Santos (Padre Cícero), Gorete Lima (D. Bela),
Lúcio Fábio (Luiz Pedro), Carlos Amorim (Zé Sereno), Gilberto Gomes (Jiboião),
Feliciano Félix (Getúlio Vargas), Karine Gaya (Sila), Dany Feitoza (Enedina), Anny Ldeney Araújo (Dulce) e Carlos Silva (Pedro de
Cândida), além de Beto Filho, Humberto Cellus, Marcos Fabrício, Eriane Freitas, Jefferson Firmino, Rodrigo Roberto,
Manoel dos Santos Lima, Diego Morais, Manoel Soares da Silva, Rubens Alves
Ferraz, Leandro, Soares de Melo, Cristiano Vitorino, José Leonardo Barbosa,
Nivaldo Nascimento, Edvaldo Severino, Alex Sandro Pereira e Francisco das
Chagas, entre outros.
Ambientada em cima de uma
ribanceira de terra batida, mas com visão privilegiada para todos, a encenação
acontece durante 1h30 contando com uma arrojada trilha sonora (que, além das
vozes gravadas dos intérpretes, inclui obras de Chico Science a clássicos
franceses, além de músicas do cancioneiro popular, como Mulher Rendeira e a canção Se Eu Soubesse, na voz da
atriz e cantora Roberta Aureliano, intérprete de Maria Bonita), iluminação
detalhista e muitos efeitos especiais, estes últimos, assim como os cenários,
assinados pelo mago da cenografia pernambucana Octávio Catanho (Tibi), parceiro
de José Pimentel em todos os seus outros trabalhos. A assistência de direção é
de Pedro Francisco de Souza.
No total, o projeto está orçado em R$ 600 mil e deve atrair ainda mais turistas
a Serra Talhada, berço do grande homem do Cangaço.
Algumas curiosidades:
Esta é a primeira vez que José
Pimentel dirige um texto para teatro ao ar livre que não é seu.
No início de sua carreira,
Pimentel participou da encenação de Lampião,
de Rachel de Queiroz, em 1955, pelo Grupo Dramático Paroquial de Água Fria, sob
direção de Octávio Catanho, vivendo um dos irmãos de Virgulino Ferreira da
Silva; e no cinema viveu também outros cangaceiros nos filmes Riacho de Sangue, A Noite do Espantalho e Faustão (nestes dois últimos, bem
estilizados).